por Demétrio Magnoli
A verdade jurídica é una e definitiva: uma sentença transitada em
julgado. A verdade histórica é múltipla e temporária: o fruto da
narrativa dos historiadores.
No Brasil, as comissões da verdade oscilam no espaço vazio que as
separa, sem produzir as consequências práticas da primeira nem as luzes
da segunda. A lista de perseguidos pela ditadura militar elaborada pela Comissão da Verdade da USP (Folha, 27/10) evidencia os equívocos desse projeto de fabricação de uma verdade estatal sobre nosso passado recente.
Olhos fixos num ponto indefinido, cabelos compridos, barba por fazer,
número 9.442 da ficha do Dops, eu, aos 18, estou na foto. Detido por
algumas horas, duas ou três vezes, junto com outros estudantes, em
manifestações contra o regime, recebo agora um selo oficial de herói da
resistência. Não "desapareci", obviamente, e não fui preso, torturado ou
exilado. Devo, como tantos oportunistas, tentar converter esse selo em
direito pecuniário, reivindicando uma bolsa-anistia que será paga por
todos os brasileiros?
A "verdade administrativa" é uma violação da verdade histórica, pois
nasce de métodos de generalização que apagam contextos e circunstâncias.
Minha foto estampada na Folha não é de 1964, quando a
perseguição da ditadura conduziu FHC ao exílio, nem de 1973, quando o
estudante de Geologia Alexandre Vanucchi Leme "desapareceu" no DOI-Codi,
mas de 1977. As torturas sistemáticas tinham sido abolidas no ano
anterior, após os assassinatos no cárcere de Vladimir Herzog e Manuel
Fiel Filho. O regime ingressava em lento declínio. Qual é o sentido
histórico de uma lista indiferenciada de 664 figuras uspianas reunidas
sob o rótulo de "perseguidos"?
Naquele ano, ainda calouro, participei da redação do efêmero jornal
estudantil "Avesso". Na segunda ou terceira edição, enchemos a capa com
uma das imagens icônicas de Mao Tsé-tung celebrizadas durante a
Revolução Cultural chinesa. O contraste entre a capa e o conteúdo
libertário dos textos compunha uma crítica irônica, mas feroz, à
esquerda stalinista. O coronel Erasmo Dias, secretário estadual da
Segurança Pública, apreendeu alguns exemplares e concedeu entrevista
para acusar-nos de "maoísmo". Havia divertimento gratuito, em meio à
tensão.
Janice Theodoro, uma das coordenadoras da comissão da USP, é
historiadora notável e, como seus colegas, certamente opera com as
melhores intenções. Contudo, a lógica inflexível da "verdade
administrativa" distorce a verdade histórica, coagulando narrativas
míticas. Entre as oito fotos selecionadas pelaFolha estão a minha
e a de Eduardo Giannetti, que estudava economia, mas já ostentava um
semblante de filósofo. A opção preferencial por colunistas do jornal
revela as armadilhas da recepção midiática de uma "verdade" não filtrada
pelas técnicas historiográficas.
As nossas comissões da verdade cumprem a função política de difundir a
falsa percepção de que o Estado democrático ajusta as contas com a
ditadura militar.
Por essa via, oculta-se o mais relevante: desistimos de punir os crimes
cometidos contra os direitos humanos. No Chile e na Argentina, os chefes
dos regimes ditatoriais experimentaram sentenças de prisão: a verdade
jurídica ergueu marcos nas memórias nacionais. No Brasil, pelo
contrário, a Lei de Anistia promulgada pela ditadura sedimentou-se na
forma de um pacto político sagrado, protegendo as autoridades militares
que comandaram a máquina de repressão, bem como seus aliados e
financiadores civis.
De Sarney a Dilma, passando por Collor, FHC e Lula, sucessivos governos
inclinaram-se à Lei de Anistia, que impede o Judiciário de cumprir o
dever de processar e sentenciar. Uma abdicação leva a outra: em nome da
verdade, no lugar de interpretações históricas criteriosas, erguemos
panteões de heróis da resistência. No fim, saímos mal na foto.
fonte rota2014
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