, por Demétrio Magnoli
O caixão de Zidan Saif desceu à sepultura, no povoado de Yanuh, dez dias
atrás. Reuven Rivlin, presidente de Israel, participou da cerimônia,
honrando a memória do policial como "um dos nobres filhos do Estado".
Saif, que deixou a esposa e uma filha de quatro meses, foi o primeiro a
entrar na sinagoga de Jerusalém atacada por terroristas palestinos.
Alvejado por um tiro na cabeça, morreu horas depois. Ele não era judeu,
mas druso, de uma minoria dentro da minoria árabe que perfaz cerca de um
quinto dos cidadãos de Israel. Nos próximos dias, o Knesset (Parlamento
israelense) deliberará sobre um projeto de lei que, se aprovado,
representará a segunda morte do "nobre filho do Estado".
O projeto enviado pelo governo define Israel como o "Estado-Nação do
povo judeu". Israel é o Estado Judeu, dos pontos de vista histórico e
demográfico.
Contudo, do ponto de vista jurídico, Israel assenta-se sobre o princípio
da igualdade de direitos políticos, sociais, religiosos e culturais de
todos os cidadãos, judeus ou não. A proposta, patrocinada pelo
primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, almeja alinhar a lei à história,
removendo os alicerces da igualdade de direitos. No meio de um texto
aparentemente inofensivo, uma cláusula determina que, diante de
sentenças legais dúbias, os tribunais devem usar a nova lei do Estado
Judeu como "fonte de inspiração". Atrás disso, está uma antiga ambição
maximalista da extrema-direita israelense: a limpeza étnica.
"Os pais fundadores de Israel vislumbraram um Estado cujas naturezas
judaica e democrática seriam como uma só", disse Rivlin, criticando o
projeto de lei. A harmonia sugerida por Rivlin é, de fato, um delicado
equilíbrio assimétrico: na Declaração de Independência que funciona como
Constituição de Israel, o polo democrático pesa mais que o judaico. A
lei do Estado Judeu pretende deslocar o equilíbrio para o polo oposto,
reduzindo a igualdade de direitos ao estatuto de contingência. Nunca
antes um governo ousara desafiar a linha vermelha.
O sinal de alerta soou no interior do próprio gabinete de governo. Tzipi
Livni, ministra da Justiça, disse que o projeto "joga no lixo a
Declaração de Independência". Yaakov Peri, ministro da Ciência,
registrou que a lei do Estado Judeu o faz pensar "nos países que adotam a
lei da Sharia".
Romper a linha vermelha significa abrir as comportas jurídicas para a
inundação da democracia israelense. No fluxo de água suja, já flutuam um
projeto de lei de revogação de mandatos de parlamentares retoricamente
solidários à luta armada contra Israel e um de evisceração da cidadania
de acusados de terrorismo, que abrange os familiares do acusado e
suspeitos de colaboração com o crime.
No fundo, Netanyahu tenta traçar uma fronteira dentro de Israel,
separando os cidadãos com cidadania plena (judeus) dos cidadãos com
cidadania precária (árabes).
É uma encruzilhada histórica, pois as raízes da legitimidade de Israel
confundem-se com a Declaração de Independência. O antissemitismo
contemporâneo, que se apresenta revestido com a película do
antissionismo, acusa Israel de ser um "Estado de apartheid". A negação
permanente dos direitos nacionais dos palestinos configuraria um
"apartheid" –mas esse risco ainda pode ser evitado por meio da conclusão
de um acordo de paz que divida a Terra Santa em dois Estados.
Por outro lado, a destruição do princípio da igualdade de direitos entre
os cidadãos israelenses representaria uma mancha indelével: a
refundação de Israel como Estado étnico e religioso.
Paradoxalmente, a legitimidade do Estado Judeu repousa sobre a presença
da minoria de cidadãos árabes. O ministro da Fazenda, Yair Lapid,
entendeu isso, ao formular a pergunta certa: "O que diremos agora à
família de Zidan Saif? Que aprovamos uma lei que os converte em cidadãos
de segunda classe?".
FONTE ROTA2014
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