Roberto DaMatta O GLOBO
À honestidade dos explorados corresponde muito de perto a consideração dos seus patrões
A nobreza obriga. Ela demanda do nobre, do dono, do empresário e, acima
de tudo, dos “políticos” — dos que ocupam cargos públicos temporários e
abarrotados de poder —, uma boa porção de deveres. De dívidas e de
responsabilidades para com os subordinados, com os governados e com a
sociedade como um todo. O capitão é o último a abandonar o navio; os
ratos são os primeiros.
Em algumas sociedades tribais, os curadores desleixados e egoístas são punidos com a morte. O caso mais contundente de noblesse oblige encontra-se
entre os shiluk do antigo Sudão, estudado magistralmente pelo
antropólogo inglês Evans-Pritchard. Lá, o rei não podia realizar atos
impuros e corruptos. Se o fizesse, todo o reino sofria e ele — como
encarnação de Nyikang, o espírito onipresente legitimador e símbolo da
própria sociedade e das suas normas morais — seria assassinado.
Tal como na Grécia e na Roma antigas, rex est mixta persona cum sacerdote (o
rei é uma figura que reúne nobreza e sacerdócio). A despeito de todas
as utopias revolucionárias, as nobrezas têm um lado sacerdotal de origem
e, se esse lado é esquecido ou abusado, com ele se vão a ética e a
honra devida ao seu caráter. Mas o Brasil de hoje passa ao largo de tudo
isso. De fato, nestes tempos de mistificação geral e oficial, a palavra
de ordem é justamente esquecer essa chatice obviamente reacionária do noblesse oblige.
Essa ética da obrigação (ou da generosidade) incomoda porque revela o
poder visto do ângulo do reprimido dos subordinados, bem como a sua
dimensão interdependente. Ela lembra que os empregados daqueles que por
nascimento, eleição, talento ou sucesso, tornaram-se poderosos, ricos e
famosos devem contar com um mínimo de proteção moral.
Podem não ter cofres, capacidade para decretar, interesses, compromissos
pessoais e partidários, mas, se deixarem de obedecer, de confiar ou de
respeitar seus patrões — se suprimirem a relação com eles —, o sistema
(o todo) vai abaixo, como estamos vendo no aumento da chamada violência
neste nosso Brasil sem nenhuma noblesse oblige.
O nobre, como o senhor, pode ter a espada, o chicote o mercado e até
mesmo os juízes e a lei, mas o subordinado tem aquilo que alguns
antropólogos antigos — que escreveram quando os animais ainda não
discursavam — chamavam de “poder dos fracos”. O poder de abençoar (ou
amaldiçoar) e de serem honestos e amorosos com os nossos filhinhos e os
nossos bens. A rebelião nasce da maldição e da vingança.
À honestidade dos explorados corresponde muito de perto a consideração
dos seus patrões. Um universo reduzido ao seu lado econômico e lido
apenas por números esconde essas interdependências morais, reveladoras
dos encaixes dos papéis sociais. Ninguém pode cortar o seu próprio
cabelo ou enterrar-se a si mesmo ou viver sem o amor de um outro. A
bênção do velho pai ou o diploma que o simboliza são indispensáveis para
o exercício de certas profissões.
A nobreza não existe sem o plebeu, nem o rico sem o pobre, tal como o
governante não governa sem o respeito dos cidadãos. Quando se fala em
“opinião pública”, fala-se do poder das relações que, queiramos ou não,
nos interligam com aqueles que são nossos superiores e, sobretudo, com
os que dependem de nossas vidas e condutas.
A divisão entre “nós” e “eles” preferida e recorrente nas falas
truncadas da nossa presidente esconde ou reprime um dado sociológico
básico: o nosso lado não existe sem o lado deles que nos legitima. Só na
obra de um autor excepcional, Guimarães Rosa, um sujeito criou uma
“terceira margem do rio”, essa reconciliação milagrosa e contra a
corrente que, na nossa vida pública, é um direito dos políticos
abençoados pelo oposto do noblesse oblige.
Pois, para esses traidores da democracia e ladrões da riqueza coletiva, a
nobreza desobriga! Daí o surto de desânimo, de desconfiança e de apatia
dos que silenciam por não terem poder ou dinheiro, mas demandam e têm o
direito à honestidade, ao pedido de desculpa e ao reconhecimento dos
erros dos poderosos. Ninguém pode ou deve esconder-se por detrás da
Bandeira do Brasil. Tentar usar desse expediente é mais do que
desfaçatez: é covardia e traição para com o todo que nos une.
Não haveria governo sem um povo, sem eleitores; ou sem um país que nos
une. Essa é a realidade permanente. A dualidade do contra e a favor é
transitória, mas sem o todo — o palco, a arena e o publico pagante — a
disputa política não existiria. Noblesse, afinal, oblige!
FONTE ROTA2014
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