por Luiz Felipe Pondé FOLHA DE SÃO PAULO
A democracia contemporânea tem como um dos seus eixos a crença num
contrato social baseado numa contabilidade de direitos. Todos querem
direitos. Existe uma fé muito clara de que o direito a qualquer coisa
que seja "é por si só um direito".
Filósofos britânicos dos séculos 18 e 19, entre eles Edmund Burke e
Jeremy Bentham, integrantes do que a historiadora americana Gertrude
Himmelfarb chama de iluminismo britânico, suspeitavam que uma democracia
de direitos poderia levar à dissolução da relação entre direitos e
deveres. E, por aí, a uma dissolução da noção de responsabilidade moral.
Em termos contemporâneos, uma democracia de coitadinhos que pedem
direito a tudo.
Os britânicos colocavam essa separação entre direitos e deveres na conta
do delírio jacobino. A ideia dos britânicos era que se você trabalha
muito (dever), você tem direito ao descanso. Se você é corajoso (dever),
você tem direito à reverência daqueles que gozam da vida graças à sua
coragem. Se você cuida bem de sua família (dever), você tem direito ao
reconhecimento por parte daqueles cuidados por você.
Esses britânicos, que segundo Himmelfarb faziam uma sociologia das
virtudes, entendiam que direitos e deveres são objetos da moral e jamais
da política. Os jacobinos achavam que a política é que devia gerir os
direitos. Para os britânicos, ao tornar isso objeto da política, os
franceses eliminavam o fator esforço (dever) do ganho (direito).
Os franceses teriam inventado a ideia de que existem direitos
"inalienáveis" do homem, pelo simples fato de que são homens. Acho a
ideia fofa, mas continuo pensando como os britânicos: se dissociarmos
direitos de deveres, viramos bebês chorões que só sabem exigir direitos.
Dito isso, vamos ao caso dos coitadinhos de hoje, no espírito de uma
antropologia do ressentimento, a melhor ciência para compreendermos o
espírito contemporâneo.
Vejamos o caso dos homens (gênero, não espécie) que estão começando a
reclamar dos deveres masculinos. Na base dessa queixa está o bom e velho
ressentimento.
Uma das demandas desses homens é o direito ao "aborto social". O termo é
derivado de coisas como "nome social" para se referir a nomes
transgêneros (ou seja, aceitos pela sociedade, mas sem referência ao
sexo biológico, como uma menina que quer ser homem e passa a se chamar
Roberto em vez de Alice, seu nome de nascimento).
"Aborto social" refere-se ao direito dos homens recusarem legalmente a
paternidade de uma criança. Se o direito pega, o chamado "golpe da
barriga" acaba. Nem a mãe nem a criança podem pedir grana (que é o que
se pede, normalmente, em casos como esse, apesar de dinheiro não ser a
coisa mais importante do mundo...).
A verdade é que, hoje, muitos homens mais jovens se sentem coitadinhos
diante de mulheres superpoderosas. E já que as mulheres podem abortar os
filhos, biologicamente (poder único da mulher), os homens reclamantes
exigem o direito de abortar "socialmente" o feto. Sinto cheiro de
ressentimento e vingança nessa, você não?
Mas existem fenômenos mais "sofisticados". Logo uma namorada vai ouvir
do parceiro: "Você deve buscar funções que remunerem bem porque eu não
estou disposto a arcar com o peso da obrigação de ser o provedor".
E aí, meninas superpoderosas, o que fazer com esses coitadinhos que não aguentam o peso e a solidão das obrigações? Nada a fazer, pois cobrar do homem o papel de provedor é "opressão", não?
Nada de ser professora de criança, nem de fazer artes plásticas, nem de
trabalhar meio período, nem de trabalho "como escolha". Apenas a dura
obrigação de prover. O trabalho deixa de ser uma opção existencial e se
torna maldição cotidiana.
Claro que muitas meninas já vivem isso. Resta saber se estão
confortáveis nesse lugar. Sendo a mentira a base de grande parte do
pensamento público hoje, pouca gente tem a coragem de reconhecer a fria
em que se meteu.
Ninguém quer deveres, só direitos. Mas são os deveres que sustentam a
formação de vínculos; os direitos apenas geram demandas, por isso servem
para políticos e embusteiros.
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