por Arnaldo Jabor O GLOBO
As velhas utopias, os projetos sociais ou políticos estão irrealizáveis
Outro dia li uma história (onde?) que poderia ser o início de um
romance, um mote para poesia ou um caso para se contar ao pé do fogo.
Um homem de 25 anos, casado e com um filho pequeno, resolveu escalar uma
montanha nevada. Subitamente, caiu uma avalanche sobre ele,
sepultando-o sob as toneladas de neve. A mulher desesperada, amigos e
guardas florestais esquadrinharam tudo em volta da subida da montanha.
Nada. Passaram-se os anos. Muitos anos. O menino cresceu e por volta dos
40 e tantos anos resolveu esquiar na montanha, boa para descidas
alucinantes.
Embaixo, feliz com sua façanha, viu um corpo aparecendo sob a neve que
já derretia com o verão. Limpou a neve, puxou o corpo e alucinado viu
que era seu pai, do qual tinha uma longínqua lembrança. E seu pai estava
intacto. E deu-se o fato espantoso: ele tinha quase 50 anos e estava
diante de seu pai com 20 e poucos. Ele contemplava a morte ao avesso — e
o tempo andou para trás. Sempre achamos que a vida e o tempo fluem para
um futuro qualquer, numa linha reta. E essa linha tinha sido quebrada.
Onde estava o passado e onde o presente? E ele via o passado do pai, ali
presente. Não era uma múmia nem o resto de um falecido. Era o pai, com
roupa, ganchos de alpinista e os olhos congelados e abertos.
Aos poucos, o tempo foi reaparecendo. E ele levou o pai para o cemitério e enterrou-o como um filho.
Escrevendo esta história, me lembrei daquele outro morto eterno, na
Áustria, um homem pré-histórico, com arco e flecha, sob toneladas de
neve durante cinco mil anos. Passaram os impérios, as civilizações
antigas, os egípcios, gregos, romanos, as guerras mundiais, as pestes,
as grandes conquistas, os belos e os horrendos momentos da humanidade — e
aquele homenzinho ali, dormindo enquanto a história marchava sobre sua
cabeça. Hoje também há uma inversão do tempo. Melhor dizendo: o presente
engoliu o passado e apagou o futuro. A ideia de “futuro” se apaga
porque não há mais um lugar onde chegaremos, um dia. Há apenas num
enorme presente, andando até o infinito. O futuro sempre foi
imprevisível. O estranho é que agora está previsível demais: não
pertence mais ao desejo dos homens — as coisas é que pensam nosso
futuro. Elas têm vida própria.
Como escreveu Paul Valéry nos anos 1920, o grande poeta e pensador que
orienta este artigo: “O futuro não será mais o que era”. Frase irônica,
profética e genial. Essas duas histórias que contei acima me levaram a
ler seu prefácio para as “Cartas persas” de Montesquieu, onde ele
desenvolve a ideia de que as “coisas vagas“, imprecisas, tênues, são
essenciais para o pensamento das sociedades de modo a criar o desejo, aí
sim, de um futuro possível.
Valéry escreveu: “Que será de nós sem criações, fábulas, arte, mitos,
crenças? Que será de nós sem o socorro do que não existe?” Está sendo
criada uma “epi-natureza” onde o homem não mandará mais em nada, com
projetos que fugirão sempre de seu controle. As coisas nos governarão,
para o bem ou para o mal. Desculpem se estou citando muito, mas, como
escreveu Marx: “O capital cria não apenas objetos para o sujeito, mas
também o sujeito para os objetos”. Um dia chegaremos ao tempo de uma
“deliciosa reificação”, quando (quem sabe?) seremos felizes como
“coisas”.
As velhas utopias, os projetos sociais ou políticos estão irrealizáveis.
Como planejar algo se as incertezas do mundo nos levam de volta ao
congestionamento dos “fatos”. Sim, dos fatos erráticos e intempestivos.
Valéry escreve: “A barbárie é feita apenas de fatos, por isso é
necessário que a era da Ordem seja o império das ficções, do que não ‘é’
ainda. (...) A Ordem exige a ação da presença das coisas ausentes. Daí
resulta o equilíbrio dos instintos pelos ideais”.
Os “fatos” não se conjugam, são aleatórios. O pensamento ocidental tenta
encontrar algo para explicar seu presente e futuro, alguma lógica
reveladora do mundo, mas os “fatos“ se recusam a participar de qualquer
processo. Vivemos uma História de fait divers.
Estamos sendo arrojados a um tempo a-histórico. No futuro (!) seremos
descritos como uma antiguidade composta de fatos trágicos ou ridículos —
inexplicáveis. Qualquer esperança de síntese será impossível. Como
escreveu Baudrillard (tão desprezado pela academia porque tinha muita
imaginação): “Acabaram-se os universais; só temos hoje o singular e o
mundial”.
E hoje vemos perplexos e amedrontados que o lixo que o mundo ocidental
ignorou está voltando e sendo derramado sobre nós. O terrorismo do
Oriente Médio é o assustador exemplo.
Eles criam catástrofes isoladas, para corroer nosso sonho de completude.
É a lógica do terror: a inesperada chegada dos fatos da violência e da
morte. Só produzem fatos. Os atentados buscam o incompreensível, o
inimaginável. Os nazistas queriam construir o tal milênio ariano; os
comunas, o paraíso social, mas os islâmicos fanáticos não querem
construir nada. Já estão prontos. Já chegaram lá. Tudo que sempre
fizemos tem o alvo na finalidade, no progresso. O Islã não quer isso.
Quer o imóvel, a verdade incontestável. O Islã não quer fazer parte da
História — quer mesmo desmoralizá-la. Para eles, a História é uma
mentira de infiéis. Eles odeiam o passado e por isso destroem cidades
milenares e tesouros culturais para apagar quaisquer vestígios de outra
época.
Enquanto isso, estamos encalacrados no presente, buscando certezas que
não chegam. Queremos conclusões, soluções precisas. Toda a era moderna é
uma busca contínua da precisão, um rumo que elimina tudo que é vago ou
irracional para privilegiar o que é mensurável e verificável.
A tecnociência talvez contribua para uma dúvida: ela é maravilhosa ou atemorizante?
Para Valéry, a antiga, a primitiva barbárie feita só de fatos não é
menos perigosa do que a nova “barbárie” da ciência positiva, que
restaura o domínio dos “fatos”, com potente e exata precisão. É uma nova
barbárie. Voltamos a viver sob o domínio dos fatos, só que dos fatos
científicos.
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