por Rodrigo Constantino O GLOBO
Desde Caminha, a proximidade com o poder sempre foi um atalho para o sucesso por aqui, independentemente do mérito ou do valor
O Brasil tem um grande paradoxo a ser explicado: nosso povo desconfia
dos políticos, classe que goza de baixíssima credibilidade, mas ao mesmo
tempo ama o Estado, visto como abstração. Todas as soluções propostas
para as mazelas criadas pelo intervencionismo estatal acabam envolvendo
ainda mais Estado. É como se ele fosse formado por anjos celestiais,
nunca pelos próprios políticos de carne e osso, tão rejeitados pela
população.
A fim de tentar explicar esse enigma, Bruno Garschagen lança pela Record
o livro “Pare de acreditar no governo”, cuja orelha tive a honra de
escrever. O autor vai buscar na formação de nossa nação as origens do
problema, em uma abordagem que dá grande peso ao aspecto cultural da
coisa. Com um estilo próprio e repleto de ironia fina, Garschagen
analisa essa insistente adoração do Estado pelo povo brasileiro em
diferentes épocas, uma adoração inabalável, apesar de revoltas
crescentes com os políticos que controlam o aparato estatal.
“O livro começa com D. Manuel I e termina com Dilma Rousseff,
comprovando que nada é tão ruim que não possa piorar”, fulmina o autor. E
claro, lá está a marca registrada de nossa mentalidade já na primeira
carta enviada após nosso descobrimento: “O pedido de Caminha, o
verdadeiro motivo para a elaboração da carta na qual a narrativa do
descobrimento foi um mero pretexto, inaugurou a nossa excêntrica
característica cultural de pedir favores ao governo para conseguir
cargos e privilégios, especialmente em se tratando de parentes”.
Desde então, a proximidade com o poder sempre foi um atalho para o
sucesso por aqui, independentemente do mérito ou do valor. Nosso
“capitalismo de Estado”, ou de compadrio, tem seu DNA já na economia das
mercês, um modelo no qual o Estado “distribuía privilégios e concessões
a partir de acordos pactuados entre o rei, o poder local e os seus
súditos”. O BNDES de Luciano Coutinho é apenas o coroamento desta velha
tradição, tirando dos pobres para dar aos ricos, tudo isso num governo
de esquerda.
Outro responsável pelas raízes dessa mentalidade intervencionista foi
Pombal. Nele temos o ápice da arrogância iluminista que julgava ser
possível construir uma sociedade próspera de cima para baixo: “O
pombalismo foi o casamento do iluminismo francês com o mercantilismo e o
patrimonialismo, que passaram a coabitar e a se retroalimentar em
benefício das elites políticas e empresariais ligadas ao governo”.
O tom altamente crítico à nossa República também é visível ao longo da
obra: “A República nasceu maculada. Fruto de um golpe de Estado, jamais
conseguiu superar as virtudes construídas pela Monarquia. Com a
República, o que era ruim não era novo, e o que era novo era péssimo”.
Outras influências nefastas nessa mentalidade estatizante foram Comte e
seu positivismo, e Vargas e seu castilhismo. Essa visão curiosamente não
dependia do viés ideológico e unia figuras bastante diferentes em torno
de um denominador comum: “É curioso observar, em retrospecto, que dois
grandes adversários ideológicos e políticos, o ditador Vargas e o
comunista Luís Carlos Prestes, compartilhavam uma concepção política
bastante similar.
Ambos olhavam para as parcelas mais pobres da população e para os
trabalhadores de cima para baixo, de maneira mais ou menos paternalista,
e viam no Estado o grande instrumento de ação social fundamentado numa
base autoritária”.
JK com seu arrogante Plano de Metas, o regime militar com seu dirigismo
estatal na economia, até mesmo FH, “acusado” de ser um neoliberal pela
esquerda, todos beberam da fonte centralizadora, com diferentes
gradações. FH, justiça seja feita, privatizou importantes estatais,
quebrou o monopólio de setores estratégicos, abriu o país para o capital
financeiro, aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal e modernizou as
agências reguladoras. Mas mesmo assim lá estava o mesmo DNA que deposita
no Estado o papel de locomotiva, se não da economia, ao menos da
“justiça social”.
O que veio em seguida, desnecessário dizer, foi o auge desse câncer que
nos assola há séculos: “Lula e o PT conseguiram algo que parecia
impossível: desmoralizaram não apenas a corrupção, mas a política
brasileira, incorporando e exercitando vários elementos de caráter
centralizador, do patrimonialismo ao positivismo castilhista, do
coronelismo ao varguismo, do autoritarismo militar ao fisiologismo das
oligarquias regionais. O lulopetismo é, no fundo, a experiência
bem-sucedida (no mau sentido) da tradição autoritária e patrimonialista
da política brasileira”.
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