por Fernando Gabeira O ESTADO DE SÃO PAULO
Num texto endereçado a cineastas, Chris Marker citou uma frase de De
Gaulle: às vezes os militares, exagerando a impotência relativa da
inteligência, descuidam de se servir dela. Marker defendia filmes
inteligentes contra o populismo de alguns pares. Creio que De Gaulle
criticava a superestimação da força armada. Algo que ficou célebre na
pergunta atribuída a Stalin: quantas divisões tem o papa?
A oposição brasileiro tem se descuidado de usar a inteligência não por
valorizar a força armada, mas as possibilidades eleitorais. Quantos
votos nos dará esse projeto? Foi assim com a derrubada do fator
previdenciário. Nada mais agradável do que votar pelos aposentados e ao
mesmo tempo ganhar um bom número de votos.
Norberto Bobbio dava muita importância à questão da aposentadoria e a
considerava um elemento divisor entre os conceitos de esquerda e
direita. Não vejo assim no Brasil. A ideia de um sistema que garanta
aposentadoria digna é universal no espectro político.
As coisas se complicam quando se discute a sustentabilidade do sistema.
Tensioná-lo com mais gastos num momento de crise aguda acaba despertando
propostas como a de Joaquim Levy: aumentos de impostos. Um projeto
político no capitalismo não implica apenas respeito às normas
democráticas. Implica também a admissão das próprias leis do
capitalismo. Se nos levamos apenas pelo coração, faremos muitas bondades
até que chegue o momento de pagar a conta. Os deputados jogaram essa
conta para o governo, que, por sua vez, a transfere, via impostos, para a
sociedade.
Quando Levy fala em ajustar a economia e, simultaneamente, em aumentar
impostos a partir das bondades parlamentares, suas tesouras são apenas
um passatempo como agulhas de crochê. As tesouras de Levy refletem o
mesmo conflito de ideais socialistas com as leis do capitalismo. E a
oposição tem de se manifestar claramente sobre isso: é um modelo de
crescimento que faliu. Derrotá-lo não significa usar os mesmos métodos
populistas, certamente com grandes dividendos eleitorais. Derrotá-lo é
propor um novo caminho.
O caso das pensões e dos salários de pescadores, embora tenha
distorções, no meu entender, merecia rejeição, ao menos para negociar.
Como começar um ajuste fiscal sem conhecer os cortes do governo? Este é o
tema mais importante no ajuste. É nele que uma visão de oposição tende a
se fixar: a racionalização da máquina, a redução de inúmeros e inúteis
cargos de confiança.
Minhas críticas são feitas de fora, o trabalho na estrada não permite
conhecer todos os dados. Mas a oposição precisa mostrar uma certa
coerência com o próprio programa. O problema de votar, em alguns
momentos, com o governo também é eleitoral: medo de desapontar o
eleitorado que rejeita Dilma e o PT.
Mas é preciso dividir as esferas de atuação: um programa claro sobre o
ajuste econômico e um trabalho sério sobre a corrupção, reconstruir e
punir. A responsabilidade pela devastação da Petrobrás, a gestão
temerária, o escândalo do desvio de bilhões é um fato histórico ainda em
movimento, pois a Justiça não se manifestou sobre ele.
Nesse contexto, um fervoroso eleitor de Dilma é indicado para ministro
do Supremo. Os principais nomes da oposição faltaram à sabatina. Era
preciso fazer perguntas, descortinar a visão política de Luiz Edson
Fachin e apresentar uma interpretação de seu discurso.
Não posso dizer que a culpa seja de Fernando Henrique Cardoso. Cada um
avalia as prioridades, organiza a agenda, é uma escolha política: a
homenagem a Fernando Henrique em Nova York ou a sabatina de candidato ao
Supremo no Brasil. O resultado é que não foi dada toda a atenção à
hipótese de o governo aparelhar o Supremo e bloquear as conquistas da
Operação Lava Jato.
Estou, talvez, reduzindo a escolha de um juiz a um fato conjuntural. Mas
o escândalo da Petrobrás é mais que isso, é o espaço em que se vai
jogar o que mais interessa às pessoas que foram às ruas: avançar na luta
contra a corrupção.
Vivemos um momento em que nem governo nem oposição se movem de forma
articulada, com ideias claras e compartilhadas sobre sua trajetória.
Vivi outros momentos assim, mas muito rápidos. Usávamos uma expressão
para descrevê-los: a vaca não reconhece seus bezerros.
Num texto para homenagear Robert Frost, John F. Kennedy escreveu: a
poesia é o meio de salvar o poder de si próprio. Sem menosprezar a
poesia, tenho uma expectativa mais pedestre: só as pessoas, com suas
dificuldades cotidianas, sonhos e frustrações e pequenas conquistas,
podem salvar o poder de sua degradação. Nenhuma força política parece
preocupada em responder a essa expectativa com um projeto coerente,
verificável nos movimentos cotidianos.
O Congresso parece desgovernado. Vota, simultaneamente, medidas de
contenção e de mais gastos. Os repórteres estão sempre fazendo contas
para verificar se estamos economizando ou gastando mais.
Era esperado um choque de posições no debate do ajuste; os setores
atingidos procuram se defender: não há nenhuma previsibilidade de
mudanças no tamanho da máquina nem o tipo de País que vai surgir desse
debate. Vendo as universidades federais fluminenses em ruína antes mesmo
da aplicação dos cortes, é razoável duvidar da retomada do crescimento
com um simples ajuste fiscal. Tudo o que não funciona nos serviços
públicos vai ganhar com os cortes uma poderosa desculpa para mascarar a
incompetência: não há dinheiro.
Assim, a Nova República vai morrer e nascerá a Novíssima República, como
aqueles antigos trens italianos, o rápido, o rapidíssimo, que nunca
chegavam na hora. Será difícil achar a luz no fim do túnel se não
decidirmos, pelo menos, em que direção procurá-la. O Brasil não precisa
apenas de um ajuste fiscal, mas de rever todo o modelo que nos jogou no
buraco.
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