por Roberto DaMatta O GLOBO
Gastamos muito, erramos muito mas, acima de tudo, continuamos a imaginar a centralização como a saída para todos os problemas nacionais
O Brasil é doente, diagnosticou o insuspeito ex-presidentre do Uruguai
José Mujica, numa entrevista à BBC que O GLOBO repercutiu na sua edição
do dia 24 do corrente. Para Mujica, com 80 anos e muitos quilômetros
rodados na vereda política e tendo como norte a irmandade esquerdista
latino-americana, a patologia nacional brasileira tem como centro o
“tráfico de influência” que seria uma “tradição” do nosso sistema
político.
Concordo em gênero, número e grau com Mujica.
Ele não leu o que tenho reiterado em livros e neste espaço, mas é
exatamente isso que afirmo quando entendo que toda a cosmologia do
Brasil se fundamenta nas relações pessoais e como essas relações são
administradas.
A lógica do dar e receber (ou do dar para receber) é o coração do
“favor”. Se eu te faço um favor, se eu te devo favores, esses favores
nem sempre se encaixam nas divisões ideológicas e jurídicas que regem o
Brasil como país.
José Mujica discerne o problema quando acentua que conseguir a maioria
parlamentar no Brasil em nível local ou nacional é muito dificil porque
“o Brasil é um macramé”. Ora, o macramé, como esclarece o dicionário, é
uma colcha de retalhos. Em sociologuês, di-ser-ia — como elaborei num
livro publicado em 1979 (“Carnavais, malandro e heróis”) — que é uma
conjunto de elos imbricados, constituídos a partir de simpatias e
antipatias pessoais, num palco demarcado por papéis institucionais. Se o
macramé fala de liames pessoais, o lado legal do sistema demanda que
ele se dobre ou venha a romper-se pelos deveres impostos pelos papéis
institucionais. Um presidente de estatal não pode nomear somente
companheiros de partido. Ele é obrigado pelo papel que ocupa a escolher
pelo mérito. Entre esses dois impulsos ou obrigações, situa-se o que
chamei de “dilema brasileiro”. Um dilema vigente em todas as democracias
inspiradas nos ideias universalistas de 1789.
Num nível tudo parece muito simples: gastamos muito, erramos muito mas,
acima de tudo, continuamos a imaginar a centralização como a saída para
todos os problemas nacionais, esquecendo a força dos velhos costumes, os
quais têm o poder das velhas tecelagens, como revela Mujica.
Tanto no plano econômico quanto no político, as regras são claras e
formais. Mas o mundo das “influências” advindas da casa, uma ética da
reciprocidade interfere com a do Estado e distorce o chamado “espirito
do capitalismo”. Nessa tecelagem, a empresa não visa ao lucro, mas ao
emprego para os amigos e recursos para o partido.
O Brasil se diferencia da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e da
América Latina porque ele não teve republicanismo e, até 1888, foi uma
monarquia fundada no trabalho escravo. Na transição entre esses regimes,
os conflitos foram reprimidos precisamente pela ética dos elos pessoais
entre monarquistas, escravistas, republicanos e protocapitalistas que
jamais abandonaram seus hábitos aristocráticos. Todos nós temos todas as
coragens, menos a de negar o pedido de um amigo, conforme dizia
Oliveira Vianna num ensaio de 1923.
Neste mundo marcado pela transparência eletrônica, esse hóspede não
convidado pelo nosso mulatismo cultural e avesso ao confronto, as
contradições surgem claramente no laço entre riqueza e poder. Entre as
demandas de quem gerencia a economia (cujas regras são digitais: “não
posso gastar mais do que tenho!”); e as da política, as quais incluem
não apenas os jeitinhos ou “pedaladas”, mas sobretudo as relações
pessoais mescladas ou não de ideologia, as quais são infinitas.
Mujica aponta que confundimos governar com mandar. E adverte: não se
pode misturar a vontade de ter dinheiro com política. Se fizermos isso,
complementa, estamos fritos. “Quem gosta muito de dinheiro tem que ser
tirado da política”. A corrupção brasileira tem um sinal:
ela se funda na apropriação de cargos por pessoas que, mesmo quando são
eleitas debaixo de uma bandeira populista ou socialista, acabam
bilionárias. É impossível resistir aos amigos, mas é muito mais difícil
liquidar essas sobras aristocráticas que são, a meu ver, a marca mais
forte e permanente do nosso republicanismo: cargos que impedem punição,
crimes que prescrevem, responsabilidades que não são cobradas. Num certo
sentido, não temos noção da tal “coisa pública” — esse conceito
imprescindível para uma vida igualitária e democrática — republicana.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
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