Ana Maria Machado
O Globo
As eleições mostraram que o país começa a enxergar. E o eleitor espera que a oposição não iguale seus métodos aos dos adversários
Numa democracia, as eleições não escolhem só quem vai governar. Mas
também determinam quem não foi escolhido e, portanto, vai fazer
oposição. É parte essencial do regime.
Entre nós, nem sempre houve muita clareza nessa área. Tivemos,
historicamente, uma tradição de golpes e tentativas de golpes no século
XX, que confundiram e distorceram por completo o conceito do que seria
oposição. Muitas vezes, apoiados em denúncias forjadas, falsificação de
documentos, dossiês apócrifos. Em geral, essas falsificações eram
veiculadas pela imprensa, repercutiam nos meios políticos, ecoavam nos
quarteis e serviam para desencadear movimentos militares. Em alguns
casos, o processo não se cumpriu em sua totalidade. Em outros, sim.
Tivemos na década de 1920 o episódio de cartas falsas (manuscritas e em
papel timbrado) atribuídas a Artur Bernardes na campanha para a
Presidência. E o Plano Cohen, em 1937, atribuindo aos comunistas o
complô de um golpe, o que acabou sendo pretexto para Vargas rasgar a
Constituição e instituir o Estado Novo. E as cartas Brandi, em 1955, que
serviram para acusar o futuro presidente João Goulart (então ministro
do Trabalho) de envolvimento com contrabando de armas para instalar no
Brasil uma república sindicalista. Logo se comprovou que era tudo falso.
Mas o clima de caça às bruxas assim instalado causou uma série de
tentativas de golpes nos anos seguintes, até que em 1964 uma delas foi
bem sucedida e acabou gerando 21 anos de ditadura.
A partir das primeiras eleições presidenciais após a redemocratização,
em 1989, o PT teve seu candidato derrotado em sucessivos pleitos. Foi
para a oposição, ao perder uma vez para Collor e duas para Fernando
Henrique. O primeiro caiu com um impeachment. O segundo a toda hora
sofria campanhas de “Fora FHC” e teve de enfrentar seguidas fábricas de
dossiês de acusações jamais comprovadas (que, ao não se ampararem em
provas, foram arquivadas e deram origem ao apelido de “engavetador-geral
da República”, desqualificando o procurador-geral que as
desconsiderara). Tais práticas continuaram com o PT já no governo, tendo
como alvo a oposição — como no caso dos “aloprados”: ainda que a
polícia tivesse apreendido e fotografado malas cheias de dinheiro em
mãos de militantes petistas, só conseguiram apurar que seu destino era o
pagamento de um dossiê falso contra José Serra, mas nunca se divulgou
quem o encomendara. Em suma, a tradição golpista e de factoides
enraizados em acusações falsas tem vida longa na história das oposições
brasileiras.
Rejeitando esses modelos, o PSDB nunca soube fazer oposição. Assistiu
anestesiado a que suas conquistas fossem demolidas por um palavrório
oco. Até recentemente, jamais defendeu com firmeza a estabilização da
economia, o controle da inflação, o Proer e o saneamento do sistema
bancário (que eliminou os créditos podres e nos protegeu na hora da
crise de 2008), a privatização na telefonia ou na siderurgia, o início
de programas sociais. Isso deu confiança a seus adversários para irem
subindo o tom, chegando a confundir social-democracia com nazismo. E não
apenas por descontrole de militantes mais exaltados pela internet, como
se esquivou a presidente. Ela mesma afirmou, no ultimo debate da Globo,
que o PSDB foi contra o Enem, quando o fato é que o Enem foi criado e
adotado na gestão FHC.
Depois de uma campanha que resolveu refutar esse vale-tudo, os tucanos
talvez se vissem zonzos, sem modelo de como fazer oposição limpa. Então,
vale recordar. E é isso o que sua liderança recém-revelada começa a
fazer.
Oposição não é partir para a desforra, tipo blackbloc, pedindo impeachment do governo recém-eleito. Não é buscar auditoria de resultado. Não é propor intervenção militar. Isso é coisa de provocador
Oposição é aceitar o resultado das urnas . E vigiar, acompanhar, cobrar o
que fazem os eleitos. Como seus líderes mais responsáveis têm
reiterado, também é não aceitar mentiras, não se deixar enrolar, não
deixar que o governo engane os eleitores. É agregar para crescer, somar o
conjunto de forças que quer ser diferente. É fazer como Aécio propôs:
montar grupos de especialistas em determinadas áreas, para acompanhar,
fiscalizar e propor. Uma espécie de ministério paralelo, ou shadow cabinet,
como tem sido lembrado, e existe em democracias parlamentaristas. É não
se deixar intimidar por quem grita mais alto ou arrebanha mais gente
para agredir. É seguir na linha que fez crescer na campanha — a de
argumentar, resistir a slogans e invencionices. Não deixar que mentiras
repetidas sejam aceitas como verdades.
É preciso uma paciência de Jó para resistir a provocações, sabemos. Mas
essa oposição limpa dá frutos. As últimas eleições mostraram que o país
começa a enxergar. E o eleitor espera que a oposição não iguale seus
métodos aos dos adversários, mas a eles se oponha.
Ana Maria Machado é escritora
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