Fernando Gabeira: O Globo
Hoje é dia de votar. Participei, diretamente ou não, de todas as
campanhas do período democrático. Nunca vi nada assim. Para começar, é a
primeira eleição sem dinheiro legal das empresas. E num momento em que
os indivíduos não parecem propensos a contribuir.
A imprensa mostra que o número de doadores é três vezes menor do que o
número de candidatos. Sem contar que há muitos mortos entre os doadores e
mais de um terço deles, 90 mil, são beneficiários do Bolsa Família.
Dinheiro mesmo não veio da sociedade. Muito possivelmente a parte mais
pobre dela contribuiu com CPFs para dar um verniz de legalidade às
doações eleitorais.
“Na rua, parece que somos transparentes. As pessoas olham como se não
existíssemos.” A confissão é de um amigo que faz campanha. A indiferença
é pesada para os que sonhavam em empolgar a cidade. Mas é também um
alívio. A hostilidade seria bem pior. O traço central da campanha não é
falta de grana, mas de credibilidade. Quase ninguém parece acreditar em
alguma saída num sistema político que envelheceu e caducou.
No primeiro dia da semana eleitoral foi preso Palocci, um ex-ministro da
Fazenda, homem importante do PT. Na sua conta, foram bloqueados R$ 30
milhões. Se olharmos para trás, para o início do processo democrático,
veremos que todos os que prometiam combater a corrupção acabaram se
afundando nela. Collor e Lula foram eleitos com essa bandeira. Ambos, de
certa maneira, foram derrubados por aquilo que anunciavam combater.
Na medida em que as pessoas fogem das eleições, os bandidos mais se aproximam delas.
A sucessão de mortes de vereadores e candidatos na Baixada Fluminense é um indício.
Em quase todos os casos, milícia e tráfico de drogas estão envolvidos.
Não se pode dizer que as pessoas foram mortas apenas por questões
políticas. Muitas tinham algum tipo de relação com o crime organizado. A
grosso modo, um policial definiu assim a sucessão de crimes: com raras
exceções, não morreram porque eram políticos, mas sim porque eram
bandidos.
Em Itumbiara, Goiás, o tiroteio durante uma carreata lembrou-me da morte
de Kennedy, só que um pouco mais tosca e sem mistério. O assassino do
candidato do PTB estacionou um carro na contramão da carreata e saiu
atirando. Foi morto. A biografia política do candidato não autoriza
suspeitar que tenha sido morto por suas ideias nem que o assassino seja
um fanático religioso ou político. Na medida em que decaía, o processo
político tornou-se cada vez mais permeável aos negócios escusos, aos
grupos paramilitares, aos aventureiros que querem apenas enriquecer com
governos.
Houve grandes eleições no Brasil. Já em 1982, pelo menos no Sudeste, ela
consagrou políticos de dimensão nacional: Tancredo em Minas, Brizola no
Rio e Montoro em São Paulo. Na de 86, havia grandes expectativas que
acabaram canalizadas para a primeira eleição direta para presidente, em
1989. Com a queda de Collor, a rápida passagem de Itamar e os dois
governos do PSDB, as esperanças se voltaram para a esquerda do espectro
político, encarnada pelo PT. Todos conhecem o resultado, embora alguns
militantes, ideologicamente, tentem ressaltar seus aspectos positivos.
Os fatos são inequívocos: o governo virou uma quadrilha, organizada para
saquear o país.
Quando me lembro do entusiasmo de algumas eleições passadas, sinto uma
certa nostalgia do tempo em que havia esperança. Alguns acham que a
esperança deveria voltar, como se fosse algo que pudéssemos fabricar a
qualquer momento. Quem tem esperança nesse processo político merece
respeito, mas está distante da realidade. Quantas vezes não ouviu essas
promessas eleitorais? Quantas vezes não viu candidato dizendo que ele,
sim, pode resolver os problemas da cidade?
O desgaste do processo político é um fenômeno de alcance mundial. Mas
cada país o vive de acordo com sua trajetória histórica. Estamos
sustentando um sistema apodrecido. Não é exato dizer que as pessoas que
se afastam dele sejam alienadas. Se entendemos alienação como distância
da realidade, é o sistema que se alienou, encastelando-se no próprio
atraso, enquanto a sociedade avançava na aspereza cotidiana.
Quando examinamos simulações de segundo turno em alguns lugares, as
coisas ficam muito claras. O índice de voto nulo é impressionante. Nem
um nem outro. Esse nem um nem outro é uma espécie de mantra que ronda o
sistema político brasileiro. Quase ninguém se sente representado.
Os movimentos moralizadores no Brasil, desde o tenentismo e algumas
variáveis de esquerda, deram com os burros n’água. É uma ilusão, creio
eu, pensar que apenas a entrada de pessoas honestas vai purificar o
sistema. Desde Shakespeare, as pessoas são essencialmente as mesmas, com
suas grandezas e misérias. Transparência, mecanismos de controle,
redução de partidos, fim de foro privilegiado, mudanças no sistema —
tudo isso aponta para um caminho promissor de mudanças. No mundo de
hoje, é quase impossível salvar a política da mediocridade. Salvá-la do
banditismo, entretanto, ainda é uma tarefa possível e necessária.
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