editorial do Estadão
Nos últimos meses têm vindo a público evidências irrefutáveis – muitas
já transformadas em condenações judiciais – de corrupção generalizada na
gestão da coisa pública, e isso eleva a níveis sem precedentes a
desconfiança dos brasileiros em relação aos políticos. Como efeito
compreensivelmente decorrente da indignação geral com quem assalta os
cofres públicos, cresce a perigosa tendência a acreditar que contra os
corruptos vale tudo, o que implica admitir que são toleráveis eventuais
excessos cometidos pela Operação Lava Jato e congêneres nas
investigações em curso. Está errado. Sob o império da lei, que vale para
todos, não se admitem quaisquer excessos praticados por agentes
públicos no cumprimento de suas funções, mesmo que sob o pretexto de
combater um “mal maior”. Ilegalidade não se combate com atos ilegais,
sob o risco de que a força da justiça acabe sendo substituída pela
“justiça” da força.
Vem a propósito a discussão em torno da tramitação no Senado do projeto
da Lei de Abuso de Autoridade, que objetiva atualizar lei de 1966 que
trata do assunto. O momento e as circunstâncias que envolvem a
iniciativa do presidente Renan Calheiros de colocar a matéria em pauta,
submetendo-a inicialmente a uma comissão especial que é presidida e
relatada pelo senador Romero Jucá, alimentam a controvérsia a partir do
pressuposto de que ambos os parlamentares, investigados pela Lava Jato,
teriam em mente, em benefício próprio, tornar a nova lei uma ameaça a
policiais, procuradores e magistrados envolvidos nas investigações de
corrupção. A partir desse princípio, o debate da questão tanto no âmbito
do Senado como nas instituições representativas das várias categorias
de profissionais que atuam nas operações de investigação, tende a
assumir um caráter passional que não condiz com a objetividade e isenção
que o tema exige.
Por mais plausíveis que sejam as suspeitas sobre as intenções de
políticos com o rabo preso, de um lado, e de funcionários com interesses
corporativos, de outro; e por mais que possa ser considerada
intempestiva a discussão dessa nova lei, nada elide o fato de que,
primeiro, é inegável e por todos reconhecida a necessidade de
atualização de um estatuto legal que comemora exato meio século de
existência. Além disso, ao contrário do que muitos imaginam, este é
exatamente o momento apropriado para o aperfeiçoamento dos dispositivos
legais que regulam o exercício da autoridade, já que não faltam, nestes
tempos, exemplos de abuso de poder.
É descabida, assim, a colocação feita pelo procurador regional Carlos
Fernando dos Santos Lima, da força-tarefa baseada em Curitiba, em
entrevista ao Estado,
de que “a aprovação da lei de abuso de autoridade pode significar o fim
da Operação Lava Jato”, uma vez que “o texto do projeto tem por
finalidade principal criar constrangimento para quem investiga situações
envolvendo pessoas poderosas, principalmente empresários e políticos”.
Ora, a verdade é que o trabalho competente e dedicado de procuradores,
associado ao de policiais e magistrados, tem possibilitado, nos últimos
dois anos e meio, colocar atrás das grades um número de empresários e
políticos sem precedentes na História do País. E esse é um trabalho que
prossegue. Como também é verdade que, eventualmente, policiais,
procuradores e magistrados podem ceder à tentação de atropelar os
limites da legalidade. Esse atropelo é que pode prestar bons serviços à
impunidade.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que levou ao Senado a sugestão de
que fosse recolocado na pauta da Casa o projeto de 2009 que aperfeiçoa a
lei de 1966, deu uma resposta exemplar ao procurador Santos Lima:
“Parece que eles (procuradores) imaginam que devam ter licença para cometer abusos”. Completou, em entrevista à Folha de S.Paulo:
“Nós temos que partir de uma premissa clara: a definição de Estado de
Direito é a de que não há soberanos. Juízes e promotores não são
diferentes de todas as outras autoridades e devem responder pelos seus
atos”. Mas esclareceu: “Deixa eu dizer logo: a Lava Jato tem sido um
grande instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do
sistema político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativa
uma série de reformas”.
extraídaderota2014blogspot
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