Fernão Lara Mesquita: O Estado de São Paulo
Isso tem um lado bom e um lado ruim.
O lado ruim é que não há muito que possa ser feito para evitar todo o
sofrimento ainda por ser sofrido apenas com as ferramentas de gestão da
economia. Temos, agora, profissionais cuidando do assunto e estamos
livres da firme opção pelo suicídio do passado recente, mas o “trem-bala”
para o crescimento em que nos recusamos a embarcar nestes 13 anos de
opção preferencial pela burrice não está mais voando nos trilhos. A
computação devora empregos, os monopólios universais arreganham dentes
que os nacionais nunca tiveram, a insegurança geral embala a “disrupção” universal do bom senso e já nem os Estados Unidos ou a Inglaterra escusam de surfar a onda protecionista que vem vindo.
O mundo politicamente evoluído, pequenininho, dissolve-se incontrolavelmente, em dores, na imensidão do outro.
O lado bom é que, tendo este Brasil onde todos os lados ainda “defendem instituições”
usando a primeira pessoa do singular permanecido inteiramente fora da
evolução da política nos séculos 19 e 20, temos muito espaço para
avançar mesmo com um mundo em crise.
Democracia e o seu corolário mais cobiçado, o resgate de sociedades inteiras da miséria, são processos ecológicos. A versão “ponto3”
(depois de Atenas e de Roma) dessa bela invenção que o Brasil ainda
haverá de experimentar um dia é construída em etapas sucessivas de
desenvolvimento. É engendrada no momento em que a Magna Carta de 1215
faz saber ao rei de Inglaterra que toda a riqueza que o reino produz não
é mais só de sua majestade, restando ao povo suplicar-lhe por migalhas,
mas, daquela data em diante, exatamente o contrário. Vê a luz 450 anos
depois, quando o rei empobrecido, depois de ceder quase todo o poder ao
Parlamento, distribui a propriedade da terra da “sua”
América em pleno feudalismo para conseguir financiar sua colonização e
abre, com a democratização do acesso à propriedade, a possibilidade
prática do império de uma só lei igual para todos. Consolida-se, no seu
apogeu, com as reformas da “Progressive Era”
(1890-1920) de uns Estados Unidos ainda jovens quando, diante da
corrupção galopante decorrente da associação do Estado com o “big business”
nascente, os americanos reconhecem oficialmente que o homem exerce a
sua liberdade sobretudo na sua dimensão econômica e que, portanto, é
imperativo assegurar as condições mínimas para que ela continue sendo
possível. O trabalho, e não os relacionamentos políticos, deve ser o
fator decisivo de sucesso nos negócios. A inovação deve ser o único
fator legítimo de obtenção de vantagens competitivas. Garantir a
sobrevivência de um bom número de patrões e fornecedores disputando
consumidores e trabalhadores deve ser o único fator de limitação da
livre concorrência e o único objeto admitido das interferências do
Estado na economia.
A tudo isso se chegou não por qualquer tipo de deliberação romântica,
mas pela razão muito prática de que a História já tinha provado
suficientemente que qualquer outro expediente que não tratasse de
suprimir radicalmente de cena o “presunto” que o Estado serve e “moscas” como nós foram feitas para farejar conduz direta e inevitavelmente à corrupção. Sob a luz desse mesmo pragmatismo, a “legislação antitruste” de prevenção à concentração da propriedade deu forma ao novo padrão de democracia e os direitos de “iniciativa” e “referendo” legislativo garantidos pela prerrogativa do “recall”
a qualquer momento dos mandatos condicionalmente atribuídos pelos
eleitores aos seus representantes puseram o povo efetivamente no poder e
em condições de impor o respeito à nova ordem. E a prosperidade, de
mãos dadas com a ciência, pôde finalmente triunfar.
É deste último patamar do “capitalismo democrático”
com seu formidável poder de exorcizar a ignorância e a miséria que os
poucos países que chegaram a usufruí-lo estão sendo constrangidos a
recuar pela diluição das fronteiras nacionais e o esvaziamento do poder
também da versão benigna do Estado de fazer valer legislações
específicas. Mas mesmo que seja somente até à etapa anterior – a da
estrita igualdade perante a lei, inclusive e principalmente para os
agentes do Estado – este Brasil dos privilégios automaticamente
legalizados desde que simplesmente “adquiridos” um dia tem muito que andar.
O que há de importante na sequência de eventos históricos acima
descritos é a ordem dos fatores. Os asiáticos, que têm conseguido “viradas”
nada menos que miraculosas da selvageria política e da miséria para o
império da lei e a abundância em menos de uma geração, estão aí para
provar que, desde que nos disponhamos finalmente a percorrer esta que é
hoje uma velha estrada batida, podemos produzir o mesmo milagre em bem
menos tempo que os 800 anos tomados aos desbravadores ingleses.
Ultrapassados os limites que ultrapassamos não há mais “meias-solas”
possíveis. Não haverá remissão sem a eliminação do privilégio
legalizado que impede o País de respirar. E quanto mais demorar para
essa questão ser encarada de frente, menos fôlego restará para repor em
pé uma economia exaurida. O necessário tratamento aos agentes
coadjuvantes da miséria do Brasil – os “empresários”
a que os donos das chaves dos cofres públicos recorrem para desviar
dinheiro para fora do sistema – ettá em curso. Mas não basta. É preciso
atacar o desvio sistemático e legalizado da riqueza nacional impondo aos
agentes do Estado a mesma lei – penal, salarial, tributária, de
direitos, de deveres, de segurança e de insegurança no trabalho, de
aposentadorias e de pensões – que já vale para todos os outros
brasileiros e demais habitantes do mundo real.
extraídaderota2014blogspot
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