Carlos Alberto Sardenberg:O Globo
Vamos imaginar a seguinte situação: o Congresso aprova integralmente
esse combo de projetos que anistia a prática do caixa dois em todas as
eleições passadas; estabelece regras de abuso de autoridade para juízes,
promotores e policiais; e introduz uma reforma política que beneficia
os grandes partidos.
O que acontece?
Primeiro, a Lava-Jato já era. Considerem, por exemplo, as delações da
Odebrecht, talvez a maior doadora de campanha, mais generosa com os
maiores partidos, ou seja, aqueles com maior chance de governar. Há duas
questões aí: uma, a origem do dinheiro doado, se legal (lucros normais)
ou ilegal, fruto dos cartéis e preços superfaturados; e, duas, como o
partido recolheu esse dinheiro, se por meio de doação registrada nos
tribunais eleitorais ou como caixa dois ou, afinal, ninguém é de ferro,
como recursos embolsados na física.
Ora, se o caixa dois ficar legalizado, boa parte dos problemas dos
políticos estará resolvida: os advogados terão que simplesmente
concentrar a maior parte do dinheiro em doações legalizadas no tribunal
eleitoral ou no caixa dois. Vai sobrar pouco para as propinas. Reparem
ainda: mesmo que se prove que uma empreiteira doou dinheiro roubado de
estatais, o político beneficiado pode dizer que não sabia dessa origem
maligna.
E por que então deixou essa grana no caixa dois? Porque era mais fácil
gastar o dinheiro assim. Sabe como é a confusão das campanhas
eleitorais.
Posso imaginar o advogado exibindo um sorriso de condescendência diante
do juiz: além de tudo, meritíssimo, como o senhor deve saber, caixa dois
não era crime na ocasião e, mesmo que fosse, estaria anistiado; e meu
cliente não tinha como saber que os recursos de uma empresa tão
prestigiada na época poderiam ser ilegais.
De quebra, o advogado poderia insinuar uma ação por abuso de autoridade
contra as autoridades que insistissem em seguir com o processo.
Já devem ter percebido que a manobra toda livra a cara dos políticos,
mas não das empresas, de seus executivos e dos funcionários de estatais
que participaram da roubalheira.
Pode-se cair na seguinte situação: a Odebrecht confessa — em delação
para reduzir penas e prejuízos — que participou e organizou cartéis;
cobrou preços superfaturados; distribuiu esse dinheiro por fora de sua
contabilidade oficial; circulou esses recursos ilegais em contas não
declaradas no Brasil e no exterior; não declarou renda às Receitas e
autoridades monetárias de vários países, incluindo Estados Unidos, onde
estão pegando pesado contra essas empresas e bancos que as ajudam.
Considerando que funcionários de estatais sabiam disso tudo e pegaram parte do dinheiro na física, também estarão condenados.
Só sobra uma boa linha de defesa para os políticos. Deputados,
senadores, governadores, prefeitos, ministros, presidente, no mandato ou
fora dele, poderão alegar que não sabiam das tramoias e que, de novo,
caixa dois era limpo.
Para colocar algum político em cana, policiais e promotores precisarão
demonstrar que ele, político, pessoalmente, organizou o cartel, a
concorrência, o pagamento da propina e que levou vantagem direta,
dinheiro no bolso ou um apartamento, uma fazenda etc.
Isso ainda teria de ser provado no detalhe, com provas materiais
definitivas, tipo um documento assinado pelo ministro mandando fazer
algo ilegal, e não apenas com a doação premiada de empresários e
funcionários. O político poderá dizer: “Meritíssimo, também estou
impressionado com essa roubalheira; como as autoridades não nos
advertiram disso?”
Tudo considerado, poderíamos chegar ao seguinte resultado: sim, houve
roubalheira, mas em nome da governabilidade e do andamento das reformas,
foi preciso resgatar o funcionamento do sistema político.
Há sinais de que estão armando algo assim. Se acontecer, é certo que
livra muita gente do governo Temer, inclusive, talvez, o próprio
presidente. Mas não decorre daí que se recupera a governabilidade. Como
um governo e líderes assim resgatados poderão tocar um complexo programa
de reformas? Com que moral?
Dirão, mas a alternativa, a continuidade da Lava-Jato e suas congêneres,
pode derrubar boa parte do governo Temer e de sua base parlamentar, o
que, obviamente, acabaria com a votação das reformas.
Sim, o processo seria paralisado. E o país, a sociedade, teria de
encontrar outras lideranças para tocar o necessário programa de
reformas. Se não aparecerem, teremos mais uma década ou mais perdidas.
Mas será possível que não tem mais ninguém?
De todo modo, parar a Lava-Jato é a pior saída. Apenas se estaria
adiando o acerto de contas com o amplo sistema de corrupções e
privilégios — esse, sim, o sistema que bloqueia o avanço do país.
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