MIGUEL DE ALMEIDA O Globo
De repente, os bares, bulevares e salões com suas madeleines ficam radicalmente divididos entre dreyfusistas e antidreyfusistas. Uns odeiam os outros. Ao leitor, alguma coisa lhe parece familiar?
Em 1894, o oficial de artilharia Alfred Dreyfus, acusado de alta traição por passar segredos militares da França à arquirrival Alemanha, é condenado; perde sua patente, sua espada é quebrada em público. Expulso do Exército, é degredado para a Ilha do Diabo, coitado. Ocorre que o processo se encontra recheado de erros maledicentes. Logo se inicia toda uma movimentação para libertá-lo. Porém, o que dividia os franceses não era tão somente o episódio militar, mas sim o fato de Dreyfus ser judeu: assim, todo um ódio antissemita permeia as discussões e alimenta as suspeitas de praxe. Antes um problema de incompetência gerencial militar, vendida como conspiração de folhetim bem banal, logo se avoluma numa campanha de ódio contra os judeus, alimentada por ciúmes, desconfianças e intrigas racistas. Ao final, depois de muitas reviravoltas, degredos, suicídios e dilapidação de biografias (familiar, professora Chauí?), Dreyfus é inocentado, recupera seu uniforme, espada, e o Exército reconhece seu erro brutal. Mas é tarde demais. Meu herói Émile Zola, responsável por denunciar a farsa e nomear os reais traidores no lendário artigo “Eu acuso”, no jornal “L’Aurore”, já se encontra morto, e não vê a redenção de Dreyfus. Muitas amizades também estariam rompidas para sempre.
Marcel Proust, que andou por Paris recolhendo assinaturas para uma petição pedindo a revisão do processo, assinada por Claude Monet e Anatole France, entre outros, coloca seu personagem Charles Swann, antes um dândi, colecionador e amante infatigável, ao final como alguém a ser evitado nos principais salões por ser… judeu. Uma cruel cena mostra o risca-faca entre o Duque de Guermantes e Swann: amigos de troca-troca (Proust gostaria da minha suspeita?) se separam de maneira irreconciliável.
A clivagem tramada pelo marketing politico de João Santana e corroborada ad nauseam por Lula ao longo da eleição de 2014 agravou-se com a eclosão da Lava-Jato e a dispensa constitucional de Dilma Rousseff da Presidência da República. O nós e eles, na gramática lulista e inspirada em Goebbels, evoca facilmente a luta entre os dreyfusistas e os antidreyfusistas. Ou o embate entre o bem e o mal forjado pela protoesquerda francesa após seguidas derrotas nas urnas no início do século passado. Velhos ressentimentos, antissemitismo, panfletos apócrifos, imprensa sensacionalista em busca de sangue, no caso Dreyfus, se travestem hoje no falso ódio contra a elite (Marcelo Odebrecht que me desminta), no fantasma da luta de classes, nos cães digitais e na insistência em destruir a reputação do adversário como estratégia política: somos todos ladrões.
A manipulação no caso Dreyfus, longamente estudada, inclusive por Hannah Arendt, mostra como se criam falsas realidades, por meio de ódios velados, para se camuflar a verdade e não serem apuradas as suspeitas. À época, Zola denunciou o silêncio obsequioso de ocasião de boa parte dos intelectuais. O leitor por certo achará a história bastante familiar, não?
Miguel De Almeida é editor e escritor
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