por Deltan Dallangnol e Orlando Martello Folha de São Paulo
A equipe da Lava Jato formou-se para o combate a crimes financeiros e de
lavagem de dinheiro praticados por doleiros como Alberto Youssef.
Jamais se imaginou, inicialmente, topar com um esquema de corrupção.
Foi uma surpresa quando se reuniram provas da lavagem de cerca de R$ 26
milhões ligados a um contrato da refinaria Abreu e Lima. Meses depois,
quando Paulo Roberto Costa decidiu colaborar, sua narrativa foi
estarrecedora: a confissão foi muito além daquele contrato.
Propinas eram pagas nos grandes negócios da Petrobras. Estávamos
falando, como descobriríamos mais tarde, de R$ 6,2 bilhões só de
subornos, valor que seria reconhecido pela estatal.
Mas as investigações -e o prejuízo aos cofres públicos- não pararam por aí.
Como observou o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, "onde você destampa tem alguma coisa errada".
Removidas as tampas, emergiram propinas nas diretorias da Petrobras, nos
ministérios do Planejamento e da Saúde, na Caixa Econômica Federal e na
Eletronuclear.
A sistemática era a mesma. Dirigentes eram escolhidos por partidos e
políticos com o compromisso de arrecadar propinas. Currículos e
critérios técnicos ficaram em segundo plano.
Nesse esquema, empresários pagavam agentes públicos (dirigentes e
políticos) por meio de operadores financeiros, que faziam o dinheiro
sujo chegar com aparência limpa aos destinatários.
Até o momento, em primeira instância, as investigações levaram a 52
acusações contra 241 pessoas, por crimes como corrupção, lavagem e
organização criminosa.
Dentre elas, 110 foram condenadas a penas que ultrapassam mil anos de
prisão. O ressarcimento soma mais de R$ 3,6 bilhões -antes da Lava Jato,
virtualmente nenhum caso recuperou mais de R$ 100 milhões, e a regra é
não reaver um tostão sequer.
No entanto, talvez o maior impacto da Lava Jato tenha sido a
responsabilização igualitária dos criminosos, pouco importando cargo ou
bolso. Perseguiu-se a "grande corrupção", aquela que deslegitima as
instituições e até então era imune ao Judiciário.
A corrupção de que tratamos afeta a eficiência da gestão pública, drena
recursos de serviços essenciais, desequilibra o processo democrático e
violenta os princípios republicanos.
É a corrupção que mata pela fila do SUS, pela falta de manutenção das
estradas, que nutre a violência pela ausência de políticas públicas e
que atrasa o país pela deficiência da infraestrutura.
Como o mensalão, a Lava Jato tem se mostrado excepcionalmente diferente em relação à impunidade. É a exceção que confirma a regra.
Precisamos reconhecer que o relativo sucesso é fruto de uma multidão de
fatores, que incluem um trabalho coordenado, inovador e profissional de
vários órgãos, o amadurecimento de leis e instituições e... muitos
lances de sorte. Foi valioso ainda o apoio da sociedade.
O avanço se deu sobre um tripé formado por colaborações premiadas, cooperações internacionais e transparência.
As delações -sempre ponto de partida, jamais de chegada- permitiram a
expansão exponencial da investigação. Embasaram buscas e apreensões,
colheita de depoimentos e quebras de sigilo fiscal, bancário e
telefônico; as transações bancárias rastreadas somam mais de R$ 1
trilhão.
As cooperações internacionais -mais de 120 intercâmbios com 34 países-
permitiram alcançar documentos de contas secretas no exterior usadas há
décadas.
Por fim, a realização de entrevistas coletivas, o lançamento do primeiro
website de um caso criminal do país, a assistência de assessores de
comunicação e a publicidade dos processos eletrônicos garantiram o que
Albert Meijer denominou transparência virtual, facilitando o acesso à
informação, o acompanhamento da investigação e, principalmente,
propiciando o controle social.
O debate transcendeu o meio jurídico e, para nossa sorte, ganhou o gosto popular.
O acervo probatório produzido é imenso. Como a usual tática dos
investigados de negar os fatos já não funcionava, passaram a difundir a
falsa ideia de abusos na Lava Jato.
Tal noção não se sustenta. Foram feitas somente prisões excepcionalmente
necessárias. Apenas 9% dos acusados estão presos -e só 3% estão
encarcerados sem condenação.
Diante da inusitada perspectiva de punição, a colaboração passou a ser a
melhor estratégia de defesa: 70% delas foram feitas com réus soltos, e
diariamente recusam-se novos acordos por não se vislumbrar ganho
efetivo.
Observe-se ainda que, se "abusos" ou "excessos" existissem, os tribunais
os corrigiriam. Mesmo contestados por grandes bancas advocatícias em
três cortes, os atos do juiz Sergio Moro foram confirmados em mais de
95% dos casos.
Alega-se também que as investigações são partidárias. Outro disparate!
Além de as equipes de procuradores, delegados e auditores terem sido
formadas, em grande parte, antes de se descobrirem os crimes na
Petrobras, trata-se de dezenas de profissionais de perfil técnico, sem
histórico de vínculo político.
A alegada perseguição é o mantra da defesa política quando a defesa jurídica não prospera.
Verdade que os partidos mais atingidos na Lava Jato são PT, PP e PMDB.
No Supremo, dentre os 17 políticos acusados, 9 são do PP, 4 do PMDB, 3
do PT e 1 do PTC.
Contudo, isso não ocorre por escolha dos investigadores, e sim porque as
indicações de dirigentes de órgãos federais se dão pelo partido no
poder ou sua base aliada. Assim, os cargos de diretoria da Petrobras
foram ocupados por essas legendas, e não pela oposição ao governo
petista.
O ataque mendaz à credibilidade da Lava Jato e dos investigadores tem um
propósito. Prepara-se o terreno para, em evidente desvio de finalidade,
aprovar projetos de abuso de autoridade, de obstáculos à colaboração
premiada, de alterações na leniência e de anistia ao caixa dois.
O Brasil, quarta nação mais corrupta do mundo segundo ranking do Fórum Econômico Mundial, está numa encruzilhada.
Se forem aprovados projetos como os mencionados, seguiremos o caminho da
Itália, que, nas palavras de um procurador da Mãos Limpas -operação da
década de 90 semelhante à Lava Jato-, lutou contra a corrupção, mas
perdeu.
O Brasil, porém, pode seguir os passos de Hong Kong, nos anos 1960
considerado o lugar mais corrupto do mundo. Após um escândalo na década
seguinte, realizaram-se reformas e, hoje, é o 18º país mais honesto no
ranking da Transparência Internacional (o Brasil está na 76ª posição).
A história do Brasil é também uma história de fracassos na luta contra a
corrupção. Casos como Anões do Orçamento, Marka Fonte-Cindam,
Propinoduto, Banestado, Maluf, Castelo de Areia, Boi Barrica e tantos
outros caíram na vala comum da impunidade.
A corrupção tem alto custo ao país. Temos de fechar essas brechas por onde escapam os ladrões e o dinheiro público.
Alterações legislativas, como a reforma política e as dez medidas contra
a corrupção, sanam problemas estruturais e podem nos pôr no rumo de
Hong Kong, o que recomenda seu debate, aperfeiçoamento e aprovação pelo
Congresso.
É importante, ainda, incentivar controles sociais e que os cidadãos, bem informados, repilam os políticos desonestos pelo voto.
É impossível reduzir o nível de corrupção a zero, mas estamos no polo
oposto. A grande corrupção tem de ser extirpada para surgir um Brasil
competitivo, inovador, igualitário, democrático, republicano e,
sobretudo, orgulhoso de si.
A sociedade tem de reagir. Parafraseando Martin Luther King, estamos
rodeados da perversidade dos maus, mas o que mais tememos é o silêncio
dos bons.
DELTAN DALLAGNOL, 36, mestre pela Harvard Law School (EUA), é
procurador da República. Integra a força-tarefa da da Operação Lava Jato
em Curitiba
ORLANDO MARTELLO, 47, mestre em gestão e políticas públicas pela
Fundação Getulio Vargas, é procurador da República. Integra a
força-tarefa da Lava Jato em Curitiba
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