Luiz Felipe Pondé:
O tema da redenção me encanta há muitos anos. Sou um descrente encantado
com a tradição bíblica. Para almas apressadas, pode parecer uma
contradição. Prefiro ver como uma espécie de pequena modéstia diante de
tamanha beleza contida nas temáticas bíblicas.
Entre as várias histórias que me encantam está a de Lázaro. Não
propriamente como a ideia do milagre de trazer alguém da morte, o que
tendo a duvidar como fato, mas, sim, como metáfora da maravilhosa
experiência que é, em meio à vida, você sentir-se vivo depois de muito
tempo em que se sentia morto. Aliás, parte dessa ressurreição é tomar
consciência dessa condição de morto em que se encontrava. Esta é a dor
de Lázaro. Fosse inventada uma máquina para medir a sensação de estar
morto em meio à vida, ela seria um blockbuster das tecnologias da
informação.
Suspeito mesmo que a civilização pressupõe uma razoável dose de
infelicidade como condição necessária. O maravilhoso livro de Freud "O
Mal-Estar na Civilização" (uma das peças literárias necessárias para se
entender o século 20) trata dessa condição de mal-estar como "resto" e
condição do "processo civilizador", nos termos do sociólogo Norbert
Elias. Acomodar os anseios numa fina equação que enlaça afetos num
sistema de obrigações sociais garante a continuidade da espécie. Penso
mesmo que este trabalho tenha ocupado muitos milênios de nossos
grandiosos ancestrais no Alto Paleolítico. Fosse eu ter uma religião
hoje, seria o culto de nossos patriarcas paleolíticos.
Assim sendo, a civilização implica uma certa "dose de morte" em meio à
vida. Lázaro estava morto e voltou à vida. Como podemos estar mortos em
meio à vida?
É possível termos uma experiência de Lázaro na vida?
Uma das formas mais comuns de morte é pensar que não há mais horizonte a
não ser o cotidiano instituído: a mesma casa, o mesmo trabalho, a mesma
padaria, os mesmos rostos, as mesmas lágrimas, o mesmo envelhecimento, o
mesmo corpo no sexo. Um dos segredos da juventude é, exatamente, a
possibilidade de ter um futuro desconhecido a ser explorado. Portanto, a
ideia de que tudo que havia para ser conhecido em sua vida já o foi é,
seguramente, uma forma de morte em vida. O amadurecimento, muitas vezes,
implica uma certa dose de descrença na possibilidade de ressurreição em
vida. Como amadurecer sem morrer?
Uma das razões para a morte em vida é a dureza da sobrevivência
material. Nesse campo, a vida não tolera "iniciantes". Qualquer erro e
ela o castigará sem pena, transformando você num "loser" cheio de
ressentimento e inveja daqueles que tiveram mais sorte ou, simplesmente,
daqueles que nasceram com mais talento do que o seu pequeno quinhão de
pobreza de espírito. E a vida profissional, no mundo contemporâneo,
carrega muito mais significado do que "mero" ganho material, uma vez que
passamos a maior parte do tempo envolvidos com ela. A vida profissional
é, quase sempre, para a maioria de nós, uma certa dose de morte em
vida.
Outra dose de morte em vida é o desencanto com o amor. A ideia de que o
amor é para iniciantes ou desavisados com certeza nos garante uma vida
longa sem sobressaltos. Infelizes são aqueles que caem vítima dessa
doença que assola seus corações com uma tristeza infinita, instaurando o
reino de uma inapetência para o cotidiano sem amor e afogado em
demandas. Tranquilos são aqueles que se mantêm firmes em seu trajeto
rumo ao envelhecimento sustentável.
Morrer em vida é, seguramente, se afogar em rancor, inveja, covardia.
Afetos esses que, facilmente, se constituem em razões para conter o
impulso de Lázaro em direção ao abandono do repouso na morte. Fiódor
Dostoiévski (século 19) via em Lázaro morto a figura do homem assolado
pelo medo da vida, assolado pela medo de correr o risco de ser perdoado
por suas misérias porque, para ressuscitar, há que reconhecer-se morto
primeiro. Só aquele que se reconhece morto poderá ver a imagem de Lázaro
refletida em seu espelho. Esse rosto marcado pela dor da morte e pelas
dores de parto que a ressurreição causará em sua vida.
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