Carlos Ayres Britto: O Estado de São Paulo
Justa é a concessão do Prêmio Nobel de Literatura a Bob Dylan. Isso a
partir da fidedignidade da decisão ao significado mesmo do termo
“literatura”. Que traduz a arte de se expressar por letras ou signos
linguísticos. Equivale a dizer: literatura e arte de se exprimir por
letras de um dado vernáculo mantêm entre si uma relação necessária.
Relação de olho e pálpebra ou de tímpano e audição. É só consultar “O
Aurélio” para ver que literato é sinônimo de escritor. De homem de
letras. De pessoa que faz da sua língua-pátria um veículo de comunicação
intersubjetiva tão facilitada quanto clara e sedutora. Atraente. Que
não é senão um modo estético-original de se comunicar.
Ora, Bob Dylan costuma fazer as letras de suas próprias canções. É um
letrista, portanto. Alguém reconhecidamente identificado com um tipo
vocabular de comunicação que é meio de vida e razão de viver. O ar
profissional, consciencial e ainda espiritual que ele respira. Por isso
que letrista inatamente afeiçoado ao ritmo, à pulsão, à plasticidade, às
pausas, à sonoridade, aos links e possibilidades semânticas dos termos e
fraseados que adiciona à sua comunicação propriamente melódica.
Fazendo-o por um modo inovadoramente poético. Poético na forma e de um
conteúdo otimizadamente conciliador de emoções e ideias. Emoções tão
profundas quanto abertas, ideias tão arejadas quanto corajosas, pois
somente assim, pela mais entranhada simbiose entre quociente emocional
(QE) e quociente intelectual (QI), é que letra de música se pode elevar à
dimensão da poesia. À arte da poesia, que passa a se colocar a serviço
da arte da música. Ou vice-versa: a arte da música a se colocar a
serviço da arte da poesia, quando a letra que se faz poema vem antes da
composição musical.
Não se esgota, porém, nessa opinião do justo prêmio o ato da Academia
Sueca. Ele também resgata o correto juízo de que literatura e poesia não
são como água e óleo. São, isso sim, gênero e espécie, respectivamente.
Continente e conteúdo, se se prefere dizer. A literatura a abarcar a
poesia, então, assim como abarca o romance, o conto e a crônica, pouco
importando se os respectivos conteúdos sejam obra de realidade ou de
ficção. Ou de ficção e realidade, mescladamente. Tanto quanto é possível
categorizar como literatura toda empreitada biográfica. Apenas com a
peculiaridade de que as obras de cunho biográfico ainda ocupam o espaço
das pesquisas e descrições historiográficas. Já no que toca aos artigos,
reportagens e editoriais jornalísticos, bem, é do meu pensar
constituírem eles uma realidade à parte. A realidade em si do
jornalismo, tão distinta da literatura quanto diferentes são os escritos
dos teóricos e dos profissionais do Direito. Cada qual dessas duas
categorias com o seu preciso e elegante estilo redacional.
Sigo em frente, agora para dizer que todo poeta verdadeiro, assim como
todo artista de fato, substitui a memória pela imaginação (“Imaginação é
a memória que enlouqueceu”, pontuou Mário Quintana). Faz a intuição ou
percepção instantânea das coisas anteceder toda reflexão. Compreende
primeiro e só depois é que busca entender. Autoconhece-se, antes de
conhecer. Quase sempre chega às grandes sínteses sem precisar de nenhuma
análise. Pega as coisas no ar, e não no tranco. Labora muito mais no
campo da formação do que da informação. Além de personalizar tudo; isto
é, o artista não coisifica ninguém e ainda personaliza as coisas. Por
isso que humanista. Com esta superlativa diferença quanto aos poetas:
eles personalizam até as palavras. Como ninguém o faz.
Sabem que o sangue da vida também flui pelas veias de cada vocábulo. E
pelos personalizados vocábulos é que mais recebem da Existência recados
estalando de novo. O desconhecido a ter gosto em visitá-los, feito
condecoração por intuírem e praticarem a máxima de que as palavras são
dados elementares do ser humano. Fazem parte da compostura neural doHomo sapiens.
Acessam-no sem que ele, ser afetivo-racional e ainda anímico, precise
fazer nada diferente daquela postura existencial da mais entranhada
combinação entre QE e QI, nessa ordem (“Primeiro, estranha-se; depois,
entranha-se”, na exata percepção de Fernando Pessoa).
Novo passo adiante: é por efeito desse estado de alumbramento (Bandeira)
com a silhueta e a aura de cada vocábulo que letristas-poetas como Bob
Dylan combinam por um modo tão intenso e harmonioso emoção e razão, que
frequentemente saltam para o topo da sua consciência. Ali onde a Vida
coreografa a dança da sua própria unidade, diria a poeta Elvira de
Macedo Nascimento. Ali onde Cecília Meirelles foi buscar inspiração para
homenagear a língua luso-brasileira com estes versos (cito de memória):
“Ai, palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa! Todo o
sentido da Vida começa à vossa porta”. Ali onde Hegel proclamou que “a
poesia é a arte da palavra”, na linha do que muito depois, porém com o
mesmo acerto, sentenciou Manoel de Barros: “Só a poesia salva a palavra
da esclerose”.
Que esse justo prêmio ao humanista Bob Dylan contribua para a
sedimentação do juízo técnico de que também humanista é a Constituição
brasileira. Por isso é que faz dos direitos sociais a necessária ponte
entre o Constitucionalismo Liberal e o Constitucionalismo Fraternal.
Assim está no inciso I do seu artigo 3.º, tanto quanto nestes precisos
enunciados: o do artigo 170, cabeça, que imprime à nossa ordem econômica
o fim de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social”; e o do artigo 193, que põe “o primado do trabalho” como
base de toda a ordem social brasileira, também a ter por explícitos
objetivos “o bem-estar e a justiça sociais”. Se ainda é certo (e é) que a
Constituição governa quem governa, o que se espera é que tais
civilizados e pinaculares princípios não deixem de orientar a discussão
das medidas legislativas de enfrentamento da atual crise econômica do
País.
extraídadeavarandablogspot
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