Gandêncio Torquato:Com Blog do Noblat - O Globo
Neste domingo, o Brasil faz sua última campanha municipal sob o
desfraldar de velhas bandeiras. Algumas delas podem ser assim lembradas:
o apartheid social desenhado pelo PT por meio de seu insistente bordão:
“nós e eles”; o desfile de caras e bocas na mídia eleitoral, cuja
audiência foi um fracasso face à rejeição do eleitor aos políticos, de
forma geral, e aos candidatos, em particular; os debates entre
candidatos a prefeito, geralmente monótonos e com regras muito
restritivas; promessas que entram na esfera das extravagâncias e
exageros.
Os 144 milhões de eleitores até reconhecem que este pleito trouxe
novidades. As ruas se apresentaram mais limpas, sem o entulho
publicitário de santinhos e cartazes afixados em postes; a proibição de
recursos às campanhas por parte de empresas exigiu mais sola de sapato,
com os candidatos se obrigando a percorrer as ruas de regiões e bairros,
reforçando os eixos da articulação social e da mobilização de grupos; a
indignação contra os escândalos que mancham o perfil de políticos,
gestores públicos e empresários tem propiciado postura mais crítica do
eleitor. Em São Paulo, chegou-se a ver eleitor revoltado enfiando o dedo
na cara de candidatos que circulavam em feiras livres. Portanto, é
possível se dizer que a campanha, cujo primeiro turno hoje se encerra
nas cidades com mais de 200 mil eleitores, já foi bastante diferente das
anteriores.
Mas a mudança não termina com as disposições impostas pela atual
legislação eleitoral. Estamos assistindo ao final do ciclo PT na
administração federal – pelo menos por uns bons tempos - e sua saída do
cenário central implica reordenação da moldura partidária, com
sensíveis alterações do estado social da Nação. A recorrente parolagem
de condenação às elites, que Lula e seu entorno plasmaram com afinco nos
últimos anos, azedou as relações de parcelas significativas da
sociedade. Construiu-se, de um lado, um inferno para “eles” e um céu
para “nós”, divisão que começou a fragmentar quando os “olimpianos”
foram flagrados nas teias do mensalão e arremetidos ao poço do
descrédito pelo tsunami do petrolão.
Com o PT estreitado pelo cabresto do eleitor, que lhe sugará um
formidável quinhão das atuais 650 prefeituras, o ambiente político e
social se libertará do grilhão expressivo que ainda faz eco em grupos
incrustados na Universidade pública, em setores da cultura (bafejados
pelo Estado protecionista da lei Rouanet) e em turbas agressivas de
movimentos do arquipélago que reúne ilhas como UNE, MST, MTST, CUT e
adjacências. Esses pedaços de militância ganharam cofres cheios na era
petista, formando uma espécie de bastião avançado de defesa do
petismo/lulismo/dilmismo. O Estado foi literalmente tomado por hordas de
grupos radicais, que se infiltraram nas malhas administrativas das três
instâncias federativas, usando a cor vermelha como a estética de virada
de mesa, de vitória contra as elites, de combate direto a tudo que
lembre consenso de Washington, neoliberalismo, privatização etc. O foro
de São Paulo, criado por Lula e Fidel Castro, em 1990, passou a se
constituir na referência maior da revolução socialista e o Estado gordo e
paquiderme tornou-se seu símbolo.
Uma nova forma de sindicalismo pelego tomou assento nos desvãos do
Estado, fazendo do Ministério do Trabalho seu trono. Nada se pode fazer
na área de relações do trabalho porque o grupo formado pelas Centrais
Sindicais – que se expande a olhos vistos – decidiu forjar sua República
sindicalista, cuja modelagem tem mais jeito de casa de moeda. O que
interessa a esses núcleos que pretensamente proclamam fazer a defesa dos
trabalhadores é aumentar o tamanho de suas contribuições e seus cofres.
Para eles, tudo é imexível: previdência e CLT, por exemplo. Em um mundo
que perde postos de trabalho a cada minuto, os controladores do
neo-sindicalismo pelego defendem o aumento das contratações de
trabalhadores pelo Estado, execrando as modalidades de trabalho do mundo
avançado (temporários, serviços especializados por terceirizados etc).
Essa é a face da pavorosa cara que o petismo e seus séquitos deixam na
paisagem devastada do país, onde um buraco de R$ 170 bilhões nas contas
públicas, uma dívida interna de R$ 4 trilhões e 12 milhões de
desempregados esperam por medidas saneadoras. Portanto, a eleição que
ocorre hoje no país se apresenta como a oportunidade de o eleitor
renovar o passaporte de alguns prefeitos e despachar outros. As
projeções apontam para o crescimento do PSDB e do PMDB e o
enfraquecimento do PT. Das 93 principais cidades do país – 26 capitais e
67 municípios – o PSDB deverá ganhar em mais de 20, o PMDB virá em
segundo lugar, na faixa dos 18, ficando o terceiro lugar com o PSB e o
PDT, de acordo com planilha estabelecida pelo site do jornalista
Fernando Rodrigues.
A diferente fisionomia partidária, com a redefinição do poder na base do
edifício político, deverá contemplar a parte central do espectro
ideológico, fato que desanuviará o ambiente de tensão formado no ciclo
petista. Por outro lado, a indignação social funcionará como aríete para
fustigar o universo da política. Donde se pinça a hipótese de que não
haverá alternativa senão a reforma política, a partir da reconstituição
da cláusula de barreira (proibindo siglas sem votos suficientes em
parcela dos Estados), proibição de coligações proporcionais e revisão
das normas das campanhas eleitorais com o fito de torná-las mais
próximas aos interesses dos eleitores.
É razoável supor que os partidos políticos ganharão densidade
ideológica, deixando de ser entes amorfos, insossos e incolores. Da
mesma forma, é possível prever campanhas menos exuberantes, mais
modestas, sem estardalhaços, acompanhadas atentamente por um eleitor
crítico. Observa-se em todos os rincões, mesmo os mais distantes, o
crescimento da racionalidade. Donde se pode tranquilamente afirmar: no
Brasil, o voto começa a escapulir do coração para entrar na cabeça. Um
avanço que merece palmas.
extraídaderota2014blogspot
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