por Carlos Ayres Britto o ESTADO DE SÃO PAULO
“Deus salve a rainha” é o refrão do Hino do Reino Unido. Traduz, mais
que uma saudação respeitosa, uma veneração. Uma espécie de culto. Não um
culto propriamente religioso nem de idolatria à personalidade deste ou
daquele governante coroado, mas à monarquia inglesa como instituição. À
monarquia do tipo constitucional-inglês como forma de governo que mais
corresponde ao modo tradicional de ser dos povos que ainda hoje têm nos
brasões britânicos um fator de identidade histórico-política. Vale
dizer, a monarquia de corte inglês como forma de governo mais
estimulante da ideia-força de uma comunidade britânica de nações.
Pois bem, no âmbito dos Estados republicanos, não há espaço para
governantes coroados. Nada de “Deus salve a rainha”, nada de “Deus salve
o rei”. República é forma de governo que se estrutura em torno de
eleições populares dos membros do Parlamento e do chefe de Estado. Não é
governo de súditos, mas de cidadãos. Com Poderes estatais
“independentes e harmônicos entre si”. No caso brasileiro, República é
um dos conteúdos institucionais da nossa democracia. O outro conteúdo é a
Federação. A democracia como continente, a República e a Federação como
conteúdos. Mas a Federação, entenda-se, como forma de Estado que melhor
serve aos próprios valores republicanos. Pelo que ela, República,
termina sendo a instituição que mais cotidianamente realiza a democracia
brasileira. Dando-se que democracia, República e Federação se
estruturam por um código jurídico de hierarquia máxima que não é senão a
Constituição.
Normativamente, portanto, a Constituição é a chave de abóbada da
arquitetura político-jurídica do Brasil. Uma arquitetura republicana e
federativa que se eleva à dimensão de “Estado Democrático de Direito”.
Mais exatamente, uma arquitetura que se eleva à mais civilizada
compostura de Estado Constitucional e Democrático de Direito. Que já é
modalidade estatal mais fortemente comprometida com a tão sonhada
democracia de três vértices: a liberal, a social e a fraternal ou
solidária. Com o mérito complementar de que servida: 1) por um esquema
de tripartição de Poderes que tem no Poder Judiciário o seu ponto de
unidade; 2) por uma imprensa tão subjetivamente constituída por
concessionários privados quanto plenamente livre em seu funcionamento; e
3) por um sistema de Tribunais de Contas e um Ministério Público tão
independentes em sua funcionalidade que nem fazem parte do próprio
esquema da separação dos Poderes. Ligam-se por modo direto à pessoa
jurídica do Estado. Sem falar que o Ministério Público tem, entre as
suas finalidades constitucionais, a de defender o próprio regime
democrático.
É pouco? Óbvio que não! Mas a Constituição brasileira vai além em sua
intrínseca valiosidade para se fazer tão materialmente expansiva que
chega a açambarcar importantes matérias de outros ramos do Direito. Além
de se fazer copiosamente principiológica e ainda indicar os conteúdos
de cada qual desses princípios. Com o que se dota de uma força normativa
incomum. É o que nos possibilita dizer que se trata de uma Carta Magna
tão polivalente que bem pode fazer o papel que a propaganda televisiva
confere a um determinado posto de gasolina: o de ter resposta para tudo.
Seja qual for a pergunta jurídica, ou o problema, ou o impasse, ou a
crise, ou o trauma igualmente jurídico, é só perguntar à Constituição.
Ou ela própria equaciona as coisas ou aponta o modo infraconstitucional
de fazê-lo.
Eis aí a estratégia das estratégias para o enfrentamento dos atuais
desafios da vida política e também econômica do Brasil. É só bater na
porta da Constituição. Consultá-la a todo instante. Aferrar-se a ela.
Radicalizar no seu apego. Saudá-la como rainha em plena República
brasileira e até invocando, ao gosto religioso do freguês, o próprio
nome de Deus. Não é necessário, mas nada obsta essa invocação. Se ela
governa quem governa (a Constituição governa permanentemente quem
governa transitoriamente), é à sua luz e do Direito rimado com ela que
os governantes e demais agentes públicos hão de ser investigados,
fiscalizados, denunciados, julgados. Ora pela imprensa e pelos próprios
cidadãos, ora pelos agentes estatais que existem, não para governar,
porém para impedir o desgoverno. Como se dá com os membros das
instituições que atendem pelos nomes de Polícia Federal, Tribunais de
Contas, Ministério Público e Poder Judiciário. Cada qual no seu
quadrado.
Pergunto, já me aproximando do fim deste artigo: e fora da regular
atuação dos órgãos e do legítimo emprego dos mecanismos de controle
social, o que se tem? Ou, por outra: no vórtice de um genérico desapego
às pautas da Constituição e, por consequência, ao cotidiano labor das
nossas instituições, o que nos espera? Resposta: nenhuma possibilidade
de consenso válido.
Nenhuma contribuição lícita de quem quer que seja. Ao contrário, o que
passa a espocar é o tiroteio das opiniões subjetivas cada vez mais de
flerte com o abismo do golpe. Opiniões cada vez mais a soldo de um
fétido e pastoso caldo de cultura do populismo, da empáfia, da
truculência e do oportunismo, para dizer o mínimo. Todas essas coisas
que redundam num salve-se quem puder do mais rançoso antiespírito
público. Um número crescente de pessoas a buscar a zona do pré-sal de si
mesmas, não para ali prospectar o que há de mais tendentemente
consensual, mas predatoriamente confrontador. De costas para a sábia e
definitiva lição de que, “fora das instituições, não há salvação” (Paulo
Guedes).
Como característica central, não é o que tem ocorrido com os membros das
citadas instituições brasileiras. Eles vêm atuando com fidelidade às
suas instituições, tanto quanto estas às respectivas finalidades. Sem se
deixar contaminar pela crise em que se debatem certos agentes públicos,
partidos políticos e empresários. Bendita separação das coisas.
CARLOS AYRES BRITTO É EX-PRESIDENTE DO TSE E DO STF
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