por Luiz Felipe Pondé FOLHA DE SÃO PAULO
Digamos a verdade: a elite cultural não aprecia muito o povo. Dito de
forma direta assim, parece uma insensibilidade perigosa em época de
ofendidos por todos os lados.
A vida nunca foi tão fácil na maior parte do planeta Terra e nunca houve
tanta gente chata e mimada reclamando de tudo. Não só a longevidade
aumentou nos últimos anos, a chatice autoconfiante também.
O que é elite cultural? Basicamente, estudantes e professores
universitários, escritores, jornalistas, publicitários, cientistas
sociais, filósofos, teólogos, historiadores, cientistas, psicanalistas e
psicólogos de diversos matizes, médicos, arquitetos, artistas,
fotógrafos-artistas, atores e diretores de teatro, produtores culturais,
cineastas, engenheiros (só aqueles casados com psicanalistas),
advogados, grandes empresários e humoristas que se levam muito a sério.
Ou seja, gente que, para exercer sua função, deve estudar "mais um
pouco" do que a maioria. Está bom como definição? Claro que posso
reduzir essa definição, mas não quero ofender ninguém, pelo menos no
tocante a esta definição.
E do outro lado desta definição, "o povo", com suas crenças, visões
estreitas de mundo e sua laje. Seu banal senso comum sobre a vida.
Intelectuais detestam senso comum de quem "crê na família" –só para dar
um exemplo clichê, tá?
O povo é aquela entidade abstrata que, quando vota em quem achamos
certo, cumpriu plenamente com sua soberania na democracia (e alguns até
gozam quando falam frases do tipo "o povo decidiu!").
Mas quando o povo fala alguma coisa com a qual não concordamos, ai, ai,
ai!. Então dizemos: "ignorantes, alienados, mal-educados, reacionários,
crentes!".
Ou, como num ato de condescendência, sacamos a hipótese que serve para tudo: falta educação!!
Do contrário, eles seriam a favor do aborto, contra a diminuição da
maioridade penal, seriam todos ateus (e se fossem religiosos, pelo
menos, seriam budistas light, católicos "da libertação", que é gente
como "nóis", ou do candomblé, que é religião de oprimido, então tudo
bem).
E mais: seriam a favor dos gays e associados, não falariam frases
idiotas como "vamos defender a família". Resumindo a ópera: pensariam
como nós (assumindo que esse "nós" existe como unanimidade).
E aí vem o pesadelo: o Congresso tem muito crente! Esses reacionários vão tomar a Paulista de mim!
Nossa elite intelectual talvez descubra que tem gozado com a própria voz
e com o próprio pensamento há muito tempo. E esqueceu que o mundo não
cabe em nossos papos cabeça.
Falando para grupinhos que tomam vinho conosco e que dizem amém a tudo
que afirmamos, esquecemos que a maioria das pessoas está preocupada é se
Jesus está ou não do lado delas. Só de pensar numa coisa dessas, alguns
coleguinhas querem vomitar. Não, o "povo" não cabe nos três ou quatro
autores que temos cultuado.
O povo, se você não enche muito o saco dele, fica fazendo o que a elite
quer que ele faça: trabalhar, gastar e concordar com o que ensinamos
para eles.
Chega a ser hilária nossa ambivalência nisso: quando o povo faz algo que
cabe em nossa concepção "progressista", o povo é soberano e devemos
deixá-lo "falar" e decidir diretamente. Quando o povo sai com absurdos
como votar num "Congresso crente", aí não vale.
Assumimos que se tiver professor suficiente que pensa como nós, o povo
vai acordar e concordar com nossas pautas, que só cabem em nosso bolso.
Na América profunda a educação é bastante boa, e, no entanto, nessa
mesma América profunda é que está o "Bible Belt", o cinturão bíblico dos
mais religiosos. Logo, a conta não fecha.
Não é educação ruim (concordo, a nossa é ruim mesmo). É apenas o fato de
que o povo não pensa como a elite cultural e intelectual (mais seleta
ainda!) quer que ele pense. A elite fica nervosinha com isso.
Queremos que o povo tenha a educação que nós queremos, aquela que
"esmagará a infâmia" –leia-se, a religião–, como dizia o iluminismo
francês, responsável por nossa ignorância com relação ao "povo".
O Brasil é um país religioso. Bem-vindos ao Brasil que não cabe em nossas crenças.
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