SACHA CALMON CORREIO BRAZILIENSE
O tempo do verbo: poderá. Segundo certos intérpretes, significa que o imposto - por opção do legislador - poderá ser seletivo ou não. Se o tempo do verbo fosse deverá (do verbo dever) seria um poder-dever. Como se trata de um poderá, seria um poder-faculdade e até citam o doutrinador italiano Santi Romano (o poder como faculdade e como dever). É a interpretação mais pedestre que jamais ouvi. É certo que a Constituição não instaura o imposto, apenas o autoriza, e enuncia características e princípios a ele atinentes. O Senado da República fixa as alíquotas interestaduais e a lei, as alíquotas internas a serem praticadas pelos estados. Até esse ponto, todos estamos acordes.
Dá-se que se os legisladores ordinários resolverem tributar, com alíquota menor, por exemplo, os produtos da cesta básica; e outra, maior do que a geral, para tributar bebidas e perfumes. Isso significa que ele exerceu o poder-faculdade que a Constituição lhe conferiu para dar seletividade ao ICMS. Ele deve ser, então, necessariamente seletivo, ou seja, tributar menos os remédios, a luz, e menos os perfumes de acordo com a essencialidade do produto para o consumidor. O ICMS permanecerá não seletivo se o legislador não variar as alíquotas, adotando somente as comuns, a interna para transações dentro do Estado e a externa ou interestadual em caso contrário (essa definida por resolução do Senado, a casa legislativa dos estados).
Como todos os estados brasileiros adotam alíquotas diferenciadas de ICMS, significa terem aderido ao princípio constitucional da seletividade, mas de maneira arrevesada, a ponto de pervertê-lo na prática da tributação (que fica embutido no preço final dos bens e serviços de transporte e comunicações, fornecimento de energia e consumo de combustíveis derivados do petróleo) arcados pelas pessoas físicas e jurídicas brasileiras, todos os dias. É nesse momento que o Judiciário, ou melhor, os tribunais superiores, o STF e o STJ, devem intervir para adequar a tributação do ICMS à Constituição da República. Chame-se a isso ativismo judicial no bom sentido.
É que os estados tributam pesadamente remédios, combustíveis, comunicações e energia elétrica, cujo consumo é maciço. Contudo, são necessários à produção e essenciais à população. Pensando somente em arrecadar, à revelia do princípio da seletividade, os estados estão descumprindo a Constituição. Não se pode nem se deve, em casos tais, condenar o ativismo judicial. Ao cabo, na espécie, o Supremo estará enquadrando o Executivo e o Legislativo nos estritos dizeres da Constituição. O estado do Rio de Janeiro fixou a alíquota de ICMS sobre energia elétrica em 25%, acrescido do adicional destinado ao fundo de combate à pobreza de 5%. Considerando-se que o imposto compõe a própria base de cálculo, tem-se alíquota efetiva e aproximada de 33% (mesma alíquota sobre perfumes e cosméticos). A alíquota sobre cervejas e chope, por outro lado, é de 20%. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) declarou a inconstitucionalidade da alíquota de 25% incidente sobre a energia e os serviços de comunicação, assegurando o direito à restituição da diferença recolhida a maior nos últimos cinco anos.
Deve ser aplicada a alíquota geral do estado, de 17%. O STF se colocou a favor da tese. A 2ª Turma, por unanimidade, disse que "a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante a aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais" (Recurso Extraordinário nº 634.457 AgR, 05.8.14). O Poder Judiciário nas decisões aqui comentadas se põe ativo, obrigando o legislador a observar a Constituição em prol do povo. A República e o Estado de Direito penhoradamente agradecem. Tomara que a Suprema Corte venha conquistar a estima e o respeito do povo, coisa que o Executivo e o Legislativo já perderam, para nossa tristeza e lamentação.
EXTRAÍDADEAVERDADESUFOCADA
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