por Ives Gandra da Silva Martins O ESTADO DE SÃO PAULO
Durante os últimos anos, numa série de artigos para O Estado de S.
Paulo, vinha alertando que o País chegaria à dramática situação atual
por manifesta incapacidade da presidente em analisar a conjuntura
brasileira e mundial e apresentar soluções macroeconômicas capazes de
permitir ao Brasil desenvolver-se. Como a economia não é uma ciência
ideológica, mas psicossocial, o fracasso que previra, nos últimos anos,
teria de chegar, como chegou.
Congelamentos, que desde Hamurabi nunca foram bem-sucedidos; inchaço da
máquina estatal, com um exército de não concursados – em torno de 115
mil – que propiciaram toda espécie de concussão e corrupção conhecida;
apoio às ditaduras (cubana e a quase ditadura venezuelana); auxílio a
países de economia fragilizada, em vez de investir na competitividade
nacional; preconceitos contra países desenvolvidos; aumento exagerado da
carga tributária; utilização de bancos e companhias estatais para
fechar furos orçamentários, e não para o desenvolvimento nacional;
promessas eleitorais opostas à própria ação governamental; e muitos
outros erros palmares levaram a economia ao estado em que está.
O próprio ajuste fiscal, no momento, é uma falácia, pois incide sobre
estudantes, trabalhadores e empresários (Fies, redução de direitos e
aumento da carga tributária), e não sobre a esclerosadíssima máquina
estatal, que mantém seus 39 ministérios e sua legião de amigos do rei. O
Bolsa Família, que consome apenas 2% do Orçamento, é também uma ilusão,
pois, além de representar aposentadorias precoces – quem a recebe tudo
faz para não perdê-la –, é dez vezes menor do que os vencimentos de
servidores públicos da União, ativos e inativos, que somam pouco mais de
1,5 milhão de cidadãos. Como dizia Roberto Campos, “com esse tipo de
mentalidade, o País não corre o risco de melhorar”.
Por outro lado, a independência da Polícia Federal (PF) e do Ministério
Público (MP) tem desventrado, para desconforto do governo federal e para
espanto da Nação, a podridão dos porões oficiais, numa tentativa de
moralização dos costumes políticos, dolorosamente maculados, nos últimos
12 anos.
Para mim, há muito mais concussão dos agentes governamentais, impondo
condições de concorrência criminosa, do que corrupção, em que é o
particular que corrompe a autoridade, e não o contrário.
Graças à Polícia Federal, principalmente, ao Ministério Público e a este
especialista no tema lavagem de dinheiro – ao lado de Bruno Rezende,
cujo livro sobre a matéria prefaciei – que é Sérgio Moro, os quais não
prestam vênia ao poder, mas à Justiça, está o Brasil descobrindo como
foi a Nação saqueada em bilhões e bilhões de reais, por autoridades
oficiais. Merece elogios, neste quadro, a figura do ministro da Justiça,
que, como bom professor de Direito Administrativo, não tem procurado
interferir na ação da Polícia Federal, apesar de estar esta subordinada à
sua pasta.
Nada obstante o indiscutível mérito que a PF, o MP e o Poder Judiciário
estão demonstrando, há reparos a fazer. Uma democracia se caracteriza
pelo direito de defesa, que não há nas ditaduras, bastando olhar para os
sistemas judiciários de Cuba e da Venezuela.
Ora, o direito de defesa pressupõe a proteção do acusado, em primeiro
lugar. O processo penal, como afirmou o saudoso mestre Canuto Mendes de
Almeida, não é feito para proteger a sociedade, mas o acusado. Sem ele,
ao fazer justiça com as próprias mãos, a sociedade vai para linchamentos
públicos ou para tribunais populares, como no período de 1791 a 1794,
na França; de 1936 a 1938, na Espanha; ou os famosos paredóns de Fidel
Castro, em que os acusados eram guilhotinados ou fuzilados, sem direito
de defesa. Apesar de, permanentemente, prestigiado pelo governo
brasileiro, em que muitos de seus participantes no passado pretenderam
implantar uma ditadura cubana no País, em Cuba e na Venezuela o direito
de defesa foi reduzido a sua expressão quase nenhuma. Por isso fala o
constituinte brasileiro, no artigo 5.º, inciso LV, em ampla defesa
assegurada ao acusado.
Ora, nas prisões preventivas determinadas na famosa Operação Lava Jato,
tal direito tem sido tisnado, pois a medida, que deveria ser
excepcional, passou a ser de uma rotina preocupante, em que a mera
imprecisa acusação ou um texto fora do contexto podem levar o suspeito a
meses de detenção, da qual só sairá se fizer uma delação premiada, como
alertou Antonio Cláudio Mariz de Oliveira em artigo neste jornal.
Há empresários que, sem figurarem em qualquer delação premiada e sem
prova de sua participação em qualquer ato ilícito concreto, tiveram sua
liberdade segregada, passando, pois, a exceção a ser regra perigosa, a
dar insegurança jurídica a todo e qualquer cidadão.
Não é possível utilizar a medida excepcionalíssima fora dos requisitos
que a autorizam, para forçar a delação premiada, mesmo que o acusado não
deseje fazê-la ou não tenha o que delatar. Tal procedimento, além de
macular o direito de defesa e subverter o princípio da presunção da
inocência, passa a ser uma espécie de tortura sofisticada do século 21.
Conhecendo e defendendo a excelência da Polícia Federal – à qual, a meu
ver, compete exclusivamente a presidência do inquérito policial (art.
144 § 4.º da Constituição federal) – e conhecendo a idoneidade e o
conhecimento profundo sobre crimes de lavagem de dinheiro do juiz Sérgio
Moro, não posso deixar, entretanto, de manifestar minha imensa
preocupação com medidas que fragilizam o direito a defesa, fundamental
na democracia, mediante a banalização das prisões preventivas por prazos
indefinidos, algo que, como um octogenário professor de Direito
Constitucional, sinto-me na obrigação de trazer à reflexão dos
operadores do Direito, das autoridades judiciais do País e de toda a
sociedade.
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