por Eduardo Muylaert O Estado de São Paulo
Causam perplexidade as notícias de acordo para livrar corruptos e
corruptores das malhas da Justiça. Será possível? A que ponto chegamos?!
No mensalão não houve acordo, e sim condenações por corrupção, peculato,
lavagem de dinheiro e evasão de divisas, com penas que passaram de 20
anos de prisão, além de multas milionárias. Muitos não acreditavam, mas
até alguns poderosos foram apanhados.
Pode a corrupção - sinônimo de apodrecimento e decomposição, em latim -
ficar impune? Não só pode, como muitas vezes fica. O vocábulo designa
atos ilícitos, na definição de Deonísio da Silva, praticados sobretudo
por políticos, os corrompidos, e empresários, os corruptores: "É
tradição brasileira a impunidade de uns e outros, com uma ou outra
exceção" (A Vida Íntima das Palavras, ARX, 2002).
Alguns fatores podem estar mudando essa perspectiva. Um deles é a
chamada política brasileira de leniência, que se inspirou em padrões
norte-americanos. O tratamento mais benevolente prometido ao infrator
que colabora traduz um endurecimento do sistema em busca de maior
eficácia. Um peixe escapa da rede, mas pega-se todo um cardume.
Procura-se assim reverter o quadro de fracasso das formas tradicionais
de investigação, descrito por Nelson Hungria já em 1959: "Os processos
penais, iniciados com estrépito, resultam, as mais das vezes, num
completo fracasso, quando não na iniquidade da condenação de uma meia
dúzia de intermediários deixados à sua própria sorte. São raras as
moscas que caem na teia de Aracne. O estado-maior da corrupção quase
sempre fica resguardado".
Hoje, mecanismos internacionais visam a controlar a corrupção e a
lavagem de dinheiro, quase sempre associados. O cherchez la femme, das
histórias de detetive, foi substituído pelo cherchez l'argent. Traçando a
rota e os esconderijos do dinheiro, chega-se com facilidade à
organização criminosa, que, sem recursos, morre sufocada.
Os mecanismos de colaboração, "espontânea" ou "premiada", das leis de
lavagem de dinheiro e de organizações criminosas, que permitem reduzir
ou evitar a aplicação de penas, parecem ter estimulado os chamados
doleiros a deixar de lado o antigo código de honra e a abrir a
caixa-preta de suas operações. A atitude é compreensível, pois até a
Itália já reconheceu que nossas prisões não são muito acolhedoras. A
Justiça se garante: se o delator mentir, omitir ou prestar falsa
informação, de nada adianta o acordo, o que dá, no mínimo, alguma
presunção de veracidade às declarações, ainda que por puro interesse.
Com isso, a cada dia aparecem novas evidências de práticas ilícitas no
caso Petrobrás, já sob investigação dos severos órgãos americanos -
Securities and Exchange Commission (SEC) e Department of Justice (DOJ).
"Quando a corrupção se tornou tão pública e os fatos tão notórios que é
preciso investigar e processar, as repercussões que acarreta a repressão
às vezes colocam o próprio governo em perigo." A frase é dos anos 1950,
de Maurice Garçon. Hoje, com relativo otimismo, o também europeu
Jacques Rancière afirma que "a Administração não é corrompida, exceto na
questão dos contratos públicos, em que ela se confunde com os
interesses dos partidos dominantes" (O Ódio à Democracia, Boitempo,
2014, pág. 94).
Nesse quadro, surge um grande número de interessados em escapar às
punições, que já parecem inevitáveis. Os fantasmas da Papuda estão
assombrando muita gente, mas há um impasse quanto à possível leniência:
as empresas envolvidas não querem admitir crimes nem apontar nomes, com
justificado receio de confessar delitos e comprometer pessoas; elas
prefeririam pagar multas, mesmo elevadas, e até celebrar eventuais
termos de ajustamento de conduta (TACs).
O acordo de leniência, normalmente, tem como consequência a imunidade
penal dos colaboradores. É o que ocorre na Lei de Defesa da
Concorrência, na qual a primeira empresa que propuser o acordo pode
obter extinção de punibilidade, até mesmo criminal, para seus diretores e
empregados, com a garantia de que o Ministério Público, estadual e
federal, também assina o acordo.
A Lei Anticorrupção, entretanto, não contém mecanismos de proteção
criminal para as pessoas físicas envolvidas, que serão responsabilizadas
"por atos ilícitos na medida de sua culpabilidade". Ela alivia as
enormes punições previstas para a empresa, mas deixa os dirigentes e
intermediários à própria sorte. E também não prevê nenhum tipo de acordo
de cessação ou termo de ajustamento.
Em matéria de cartel, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade) pode celebrar compromisso de cessação, quando entender que é
suficiente para pôr fim à prática investigada. Como a lei nada diz
quanto a eventuais consequências criminais, autores como Pierpaolo
Bottini sustentam que não deveria ser exigida confissão, ou então
deveria ser alterada a lei para deixar expressa a mesma extinção de
punibilidade da leniência. A lógica indica que, nessa hipótese menos
grave, o arquivamento da investigação deveria trancar a iniciativa
criminal, mas uma regra clara seria bem-vinda.
A Lei Anticorrupção não seguiu esse modelo, numa perspectiva um pouco
hipócrita, pois com sua natureza penal mal disfarçada se afirma apenas
administrativa e cível. É óbvio que a responsabilidade objetiva nela
consagrada é incompatível com a lei penal, o que traria problemas de
constitucionalidade. Ficamos, assim, numa estranha situação: o
legislador quis instituir a leniência para desvendar a corrupção, mas
não incluiu mecanismos de proteção para as pessoas envolvidas, o que
causa o impasse.
Vivemos um grande desafio: encontrar meios eficazes de prevenir e
reprimir a corrupção, que é exigência de todos, e ao mesmo tempo ter de
interpretar e conviver com leis contraditórias, que desafiam princípios
éticos e dificultam o exercício do direito de defesa.
*Eduardo Muylaert é advogado criminal e professor associado da FGV Direito Rio
FONTE ROTA2014
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