Pedro Dória o globo
Numa democracia, nenhum dogma deve ser respeitado. Nenhuma ideia deve crescer sem que seja testada
É fundamental escrachar Maomé. Que me perdoem os muçulmanos: não é
pessoal. Porque também é preciso escrachar Jesus e Moisés. Assim como
Buda ou Oxalá. É preciso escrachar, tornar óbvias, apresentar para que
todos as vejam, contradições e pequenas hipocrisias. É preciso escrachar
PT e PSDB, republicanos e democratas, trabalhistas e conservadores,
estas duplas bipartidárias planeta afora, também elas sempre carregadas
de hipocrisias. Escrachemos tanto Karl Marx quanto Friedrich Hayek. Se
algum tema se torna matéria de fé para um grupo, não importa se fé laica
ou religiosa, que seja escrachado.
Quase nada é mais importante, numa democracia, do que expor dogmas ao
teste da provocação e a questionamentos. Absolutamente nada expõe dogmas
de forma tão irreparável quanto o humor. O humor, afinal, revela o lado
ridículo de cada um. Ninguém quer se mostrar ridículo em público, e
todos somos um tanto ridículos. Mais ridículos são aqueles incapazes de
se rirem de si mesmos. Expor o ridículo das verdades imutáveis, dos
dogmas, continua sendo a missão do “Charlie Hebdo”. Seus editores e
colaboradores a levavam com muita seriedade. O trabalho, sabiam, podia
ameaçar suas vidas.
Democracias se sustentam numa única ideia: comunidades são capazes de se
autogovernar através de um sistema no qual ideias estão,
constantemente, expostas ao escrutínio. Todo cidadão tem o direito de
meter o dedo no nariz de quem defende algo coberto de convicções. Todas
as ideias podem ser levantadas, todas devem ser testadas.
Não foi à toa que, para democracias existirem, foi antes preciso afastar
as religiões do governo. São conceitos incompatíveis. Religiões partem
do princípio de que há ideias inatacáveis. Em democracias é o contrário.
O argumento de que fazer troça da religião alheia é desrespeitoso foge ao ponto principal.
É claro que é desrespeitoso, mas não importa. O direito de não respeitar
ideias é a viga mestra da democracia. Quem desrespeita o outro se
expõe. Ofende, cria inimizades, magoa, em casos extremos vira um pária
social. Viver do exercício do direito de desrespeitar as verdades dos
outros tem preço. Mas é porque há pessoas dispostas a pagar este preço
que somos livres. Porque só ideias muito testadas devem sobreviver. Se
uma única ideia tiver a chance de crescer sem ser refinada, nasce o
totalitarismo. Se uma única ideia puder nos governar a todos sem
oposição viva e presente, já não temos mais democracia.
Quando alguém se dispõe a matar para que algo não seja dito, é este
totalitarismo que deseja impor. A obrigação de uma sociedade livre é
garantir a segurança de quem quiser questionar o dogma. Qualquer dogma.
Por vezes, as discussões em democracias são desagradáveis. O ambiente no
debate esquenta, mexe com emoções. Somos obrigados a tolerar gente que
defende noções que nos soam desumanas, estúpidas, irresponsáveis,
irracionais.
Estas mesmas discussões desagradáveis, porque expõem com clareza todas
as ideias, empurram as instituições para longe dos extremos. Em
democracias, as religiões ficam mais moderadas. Os governos se veem
obrigados a um ajuste ao centro. Experiências de radicalismo não
sobrevivem muito tempo.
A internet é o maior experimento de ampliar o espaço de debate numa
democracia que jamais houve. Não é sem propósito, portanto, que
#JeSuisCharlie se tornou a hashtag mais popular de sua (ainda curta)
história.
fonte rota2014
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