Publicado na edição impressa de VEJA ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
Uma palavra para quem não é do ramo sobre a instituição “reunião de pauta”. Claro que há exceções e elas podem ser tensas; também podem ser insossas ou aborrecidas. Mas, em geral, tais reuniões, nas quais se planeja a edição seguinte de uma publicação, são momentos agradáveis, daqueles raros em que está todo mundo junto, não cada um em seu canto, ou mesmo em sua casa, como é cada vez mais comum, e sem a correria e, não raro, a aflição, do momento oposto, na rotina das redações, que é o “fechamento”, caracterizado pela urgência de aprontar tudo nos prazos devidos. Se já é um momento relax nas redações em geral, mais ainda o será na de um jornal humorístico. Naquela manhã, como sempre, sucediam-se as brincadeiras e jogos de palavras entre a dúzia de jornalistas em torno da mesa. Stéphane Charbonnier, o Charb, o chefe da redação, notório pelas caricaturas de Maomé, garatujava numa folha de papel. Ele desenhava sem parar.
Sempre haverá alguma utilidade em voltar ao começo. Há uma dimensão do horror que só se alcança quando se dispõe dos detalhes – e alguns detalhes do episódio se tornaram disponíveis apenas na semana passada. Nossa narrativa é baseada principalmente no depoimento de dois jornalistas sobreviventes – Sigolène Vinson, prestado ao jornal Le Monde, e Philippe Lançon, ao jornal Libération. Philippe Lançon a certa altura se levantou e pegou seu casaco. Precisava sair. Mas não saiu. Nesse momento, ouviram-se dois estampidos. Os dois homens de preto haviam começado seu serviço. Ao forçarem passagem redação adentro, mataram o segurança que ficava à porta e feriram o profissional com que primeiro depararam, o webdesigner Simon Fieschi.
Tinham agora diante deles como peças de caça generosamente oferecidas, umas bem junto às outras, para lhes facilitar o trabalho, a redação quase inteira do Charlie Hebdo. Segundo o depoimento de Sigolène Vinson, eles não metralharam suas vítimas; atiraram em um por um. Philippe Lançon foi atingido na maçã direita do rosto. Caiu no chão e se fez de morto, pensando, diria, “que talvez estivesse mesmo morto, ou que logo estaria”. Sigolène Vinson arrastou-se pelo chão e conseguiu esconder-se atrás de uma mureta. Quando os tiros cessaram, ela ouviu passos que se aproximavam. Um dos homens de preto a localizara. Ele a olhou nos olhos e disse: “Não tenha medo. Nós não matamos mulheres. Eu te poupo e, já que te poupo, você lerá o Corão”.
Na sala de redação os corpos se amontoavam, todos com o rosto no chão, alguns caídos sobre outros. Sigolène vislumbrou entre eles uma mão que se erguia. Era Philippe Lançon, o rosto desfigurado, prensado entre dois corpos que o impediam de mover-se. Sigolène não conseguiu ajudá-lo. Philippe, que embora gravemente ferido está fora de perigo, só seria retirado mais tarde, pelas equipes de socorro. Carregado de maca, diria ele, “eu sobrevoei meus colegas mortos, Bernard, Tignous, Cabu, Georges (Wolinski), e de repente, meu Deus, eles não riam mais”. De todo o resto, o que ficou para Philippe Lançon, deitado no chão, foram as “pernas negras” dos matadores. Sigolène viu Patrick Pelloux, outro sobrevivente, inclinar-se diante do corpo de Charbonnier, acariciar-lhe a cabeça e dizer: “Mon frère” (Meu irmão). Lila, a cocker spaniel, corria com seus pequenos passos de mesa em mesa. Horror, horror.
fonte augustonunesdiretoaoponto
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