por Ives Gandra Martins o estadão
Os recentes e trágicos episódios que levaram ao assassinato de 12
dirigentes do jornal Charlie Hebdo, dedicado a ironizar todas as crenças
e costumes, a título de uma ilimitada liberdade de expressão, trazem
novamente à baila a discussão sobre o conteúdo desse conceito e o
respeito aos direitos alheios, numa democracia. Até porque os direitos
naturais e fundamentais à dignidade humana ganham cada vez mais
evidência no mundo atual.
John Rawls, em seu livro Justiça e Democracia, no qual esclarece pontos
obscuros de sua "Teoria da Justiça", entende que as verdadeiras
democracias se fortalecem com a predominância das "teorias não
abrangentes". Essas teorias, formuladas na complexidade das relações
humanas e no conhecimento da conjuntura, cada vez maior, pelos 7 bilhões
de habitantes do planeta Terra, graças aos meios eletrônicos de
comunicação, de acesso até mesmo aos analfabetos, exigem respeito às
teorias contrárias, pois da convivência e do diálogo com elas é que
resulta o fortalecimento dos regimes democráticos.
As "teorias abrangentes" são sempre tirânicas, ditatoriais, impositivas,
visto que afastam a coexistência de pontos opostos da cultura,
pretendendo uma solução definitiva para todos os aspectos das relações
humanas. Seus adeptos só enxergam a prevalência das próprias ideias.
Todas as teorias contrárias devem ser eliminadas. Na concepção de Rawls,
há sempre "um véu de ignorância", em cada ser humano, quanto aos
infinitos fatores que podem influenciar suas formulações, principal
motivo de convivência entre teorias "não abrangentes", nas democracias.
Nenhum cidadão é senhor supremo da verdade.
Ora, a liberdade de expressão é um direito fundamental, cláusula pétrea
na Constituição brasileira (artigo 5.º, inciso IV), assim como, a meu
ver, também o é a liberdade da imprensa (artigo 220 da Lei Suprema,
caput). Há necessidade, todavia, de não confundir "liberdade de
expressão" com "irresponsabilidade de manifestação", para que não se
transforme a "liberdade", sem "responsabilidade", numa espécie de "vaca
sagrada indiana". Intocável.
No Brasil, o exercício da liberdade de expressão tem levado a distorções
profundas. De um lado, pretende-se considerar qualquer piada sobre
homossexuais - há projetos de lei e reivindicações nesse sentido -
profunda violência à dignidade da pessoa humana, com potencial delitivo
superior a homicídio, latrocínio, agressões, atentados à propriedade,
roubo, furto, estelionato, peculato, etc. O mesmo se diga em relação à
raça negra, chegando-se ao cúmulo de se pretender proibir a circulação
de livros de Monteiro Lobato, a pretexto de que neles haveria conotações
racistas!
Sou um profundo respeitador dos direitos alheios. Tenho grande admiração
pela cultura negra e respeito o direito dos homossexuais. Há, todavia,
uma espécie de síndrome de "irracionalidade" ao se pretender tornar
inafiançável qualquer observação ou piada que se possa fazer sobre
"gays", muito embora todos possam fazer piadas sobre a presidente da
República, sobre crenças religiosas, sobre sacerdotes, sobre
preferências de pessoas por clubes de futebol, cuja linguagem nos campos
nem sempre é publicável nos jornais.
Por outro lado, da parte de uma minoria não crente em Deus - cuja
opinião respeito - há uma forte tendência a ironizar e atacar a
esmagadora maioria de brasileiros que creem. Na França, o próprio jornal
Charlie é especializado em ironizar, o mais das vezes com pouco humor e
muita grosseria, a Igreja Católica e outras religiões.
Consideram os que atacam Cristo, seus seguidores e quem acredita em Deus
que estão exercendo o direito à liberdade de expressão. Mas entendem
caracterizar homofobia qualquer observação que se faça sobre os "gays" e
racismo qualquer referência a pessoas negras, a ponto de defenderem a
caracterização como crimes inafiançáveis.
De rigor, ninguém é mais preconceituoso do que o intelectual elitista,
que não se limita a defender suas ideias, mas usa as palavras para
atacar todos os valores difundidos pelos que creem em Deus e,
principalmente, em Cristo. A maioria da população brasileira é cristã
(católicos, evangélicos, pentecostais...). Há da parte dessa
"intelectualidade" uma evidente cristofobia, apesar de intransigente
defensora de punição à homofobia.
Pelo princípio da igualdade e pelo respeito aos direitos humanos,
deve-se considerar que qualquer agressão real à dignidade humana não
pode ser acobertada pela "liberdade de expressão", tanto que enseja
responsabilização. Violentar tais princípios numa democracia, criando
distorções que a Constituição não permite (artigo 5.º, caput e parágrafo
1.º da Lei Suprema, que, por três vezes, reafirma a inviolabilidade do
princípio da igualdade), além de injurídico, é absolutamente irracional e
antidemocrático.
Por fim, a respeito do Charlie: enquanto as charges sobre Maomé
trouxeram a morte a seus dirigentes, pelas mãos dos radicais islâmicos,
as charges sobre o papa provocaram, em grande parte dos católicos
apostólicos romanos, orações pela alma deles.
O pior dos preconceitos é o de uma elite que se autoproclama
intelectual, mas deixa de ponderar o conteúdo do direito à liberdade de
expressão em face dos demais direitos inerentes à dignidade humana.
Principalmente na França, que, conforme mostrou Samantha Pflug em seu
livro O Discurso do Ódio, proibiu que se reexaminassem determinados
fatos históricos (holocausto) e limitou a liberdade pública de expressão
religiosa a partir de uma confusa concepção de "Estado laico", que, de
rigor, não é "Estado ateu", mas apenas um Estado em que as instituições
religiosas não interferem na administração pública.
fonte rota2014
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