por João Pereira Coutinho
Os terroristas franceses já devem estar com as suas 72 virgens no
paraíso —e o leitor, no conforto do seu lar, sente que existe uma
pergunta lógica, porém desconfortável, que ocupa espaço no seu crânio
ecumênico. A saber: se o jornal satírico "Charlie Hebdo" nunca tivesse
publicado cartuns ofensivos para a religião muçulmana, será que o
massacre teria ocorrido?
Melhor ainda: por que motivo insistimos em "blasfemar" contra a fé dos radicais? Ganhamos alguma coisa com isso?
Para o leitor benemérito, se o Ocidente apagar o mundo islâmico dos seus
radares, obedecendo caninamente aos preceitos da sharia, o mundo
islâmico também apagará o Ocidente das suas armas. A Deus o que é de
Deus, a César o que é de César –e a Alá o que é de Alá. Cada um no seu
canto. Em paz e sossego.
Existem várias formas de lidar com essas perguntas ingênuas. A mais
óbvia seria lembrar que o terrorismo islamita não precisa de nenhum
pretexto para atacar um "modo de vida" que abomina no seu todo. Se não
fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo,
os "infiéis" não pisam o risco apenas quando usam o lápis.
E, claro, silenciar a liberdade de expressão seria um suicídio civilizacional –e uma vitória para os assassinos.
Mas existe outra forma de responder às inquietações do leitor —e a história do século 20 continua sendo a melhor escola.
Daqui a uns dias, passarão 50 anos desde a morte de Winston Churchill. E
um livro recente tem ocupado os meus dias: "The Literary Churchill", de
Jonathan Rose (Yale University Press, US$ 25, 528 págs.), uma biografia
do velho Winston lançada em 2014 que procura explicar o seu percurso
político por meio dos textos que ele leu, escreveu e, naturalmente,
representou como grande ator que era.
Um capítulo da obra, porém, merece atenção especial à luz do terrorismo
na França: na década de 1930, com a memória da Primeira Guerra Mundial
ainda fresca, a elite política (e conservadora) britânica tentava
desesperadamente não embarcar em novo conflito contra a Alemanha.
E Lord Halifax, secretário de Relações Exteriores, era apenas um dos
rostos dos "appeasers" (pacifistas, em português) que acreditou na
possibilidade de manter a fera na sua jaula.
Halifax conheceu pessoalmente Hitler em 1937 e notou que o Führer nutria
um ódio insano por dois temas em especial: o comunismo soviético
(lógico) e, atenção leitor, a liberdade de expressão da imprensa
britânica (ilógico?).
Para Hitler, e para o ministro da Propaganda alemã Goebbels, a imprensa britânica era o grande obstáculo para a paz. Por quê?
Ora, porque bastava ler a prosa antigermânica do "News Chronicle" ou do
"Manchester Guardian" para concluir que os jornalistas britânicos não
respeitavam a figura sagrada de Hitler, o "profeta" da raça ariana.
E quem diz "ler", diz "ver": no "Daily Herald" ou no "Evening Standard",
Hitler não apenas era severamente criticado (por Churchill, por
exemplo). Ele era igualmente ridicularizado nos cartuns de Will Dyson ou
David Low (os Wolinskis da época).
Halifax, que nunca se notabilizou pela coragem, regressou à Inglaterra
com a mesma ideia que o leitor ecumênico tem na cabeça: se ao menos a
imprensa se comportasse"¦ Quem sabe? Talvez Hitler ficasse
sossegadamente em Berlim, desenhando nas horas livres e constituindo
família com Eva Braun.
Aliás, Halifax não ficou nas ideias: ele convenceu mesmo David Low a
moderar os seus desenhos, coisa que o artista fez, mas só até Hitler
invadir a Áustria em 1938.
Depois disso, regressaram os cartuns antinazistas (que os "appeasers" continuavam a considerar "gratuitos" e de "mau gosto").
Curioso: Hitler devorava a Europa, pedaço a pedaço, em busca do seu
"espaço vital". Mas as avestruzes britânicas acreditavam que tudo seria
diferente se o lunático Adolfo tivesse sido tratado com "respeito" pelos
jornais.
Churchill nunca mostrou respeito. E, quando finalmente assumiu o
governo, em 1940, tratou Hitler com a dureza de sempre. A besta nazista
foi derrotada em 1945.
Existe uma moral na história dessa história?
Existe, leitor ecumênico: não somos nós os culpados pela loucura dos outros.
Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.
fonte rota2014
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