Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

‘Feliz ano novo’

 Roberto Pompeu de Toledo: Publicado na edição impressa de VEJA


Acabou o Natal, foi-se o Ano-Novo. Eis-nos no ponto zero na corrida rumo ao próximo Natal e ao próximo Ano-Novo. Alguns não chegarão lá (aos casos previsíveis se somarão os surpreendentes). Outros chegarão exangues. Todos chegarão mais velhos. Mas haverá os que, mais bravos, ou talvez mais ingênuos, chegarão cheios de gás e prometerão a si mesmos encetar com mais gás ainda a corrida rumo ao Natal e ao Ano-Novo seguintes, ao fim dos quais, mais animados ainda, partirão em direção a mais Natais e mais Anos-Novos. Alguém aí explica essa corrida de doidos? O tempo não cansa de nos desafiar com seu mistério.

Em À Sombra das Raparigas em Flor, o segundo dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust faz o narrador da história enviar uma carta de Ano-Novo a Gilberte, garota pela qual estava enamorado, anunciando o propósito de deixar de lado as decepções do ano velho em favor de “uma amizade nova, tão sólida que ninguém a destruiria”. O dia 1º de janeiro chegou com um vento suave e úmido. Prossegue o narrador: “Aquele tempo me era bastante conhecido; tive a sensação e o pressentimento de que aquele dia do Ano-Novo não era um dia diferente dos demais, não era o primeiro dia de um mundo novo em que eu poderia, com sorte, refazer minha amizade com Gilberte como no tempo da Criação, como se não existisse o passado”.
Conclusão: o primeiro dia do ano “não sabia que o chamávamos de dia do Ano-Novo”. Tanto que ao crepúsculo, junto com o vento tão conhecido que soprava na Avenida Champs-Élysées, reapareceu “a matéria eterna e comum, a umidade familiar, a ignorante fluidez dos antigos dias”.
Um amigo inglês do colunista achava curioso que em português a mesma palavra designava tempo no sentido de clima (weather, em inglês) e no sentido de duração, de passagem das horas (time). O mesmo ocorre em francês e nas demais línguas latinas. No trecho citado, Proust dá como prova de que o “tempo” (passagem das horas) não mudara, apesar de o calendário anunciar o ano novo, sinais exteriores como o vento e a umidade familiares (“tempo”, no sentido de clima).
Confundir um sentido da palavra com o outro é uma esperteza que tenta dar materialidade ao que é invisível, impalpável, insípido e inodoro. O sol, o vento, o calor ou o frio, atributos do tempo no sentido de clima, como que vestem o fantasma imperceptível que é o tempo no sentido de duração. O truque é semelhante ao do calendário, que tenta aprisionar em dias, semanas, meses e anos algo irredutível a qualquer prisão material como o tempo. Quando fixado na folhinha ou no relógio, portanto suscetível de ser visto, classificado e medido, o tempo perde seu assustador mistério. Igualmente quando revestido de sol, vento ou chuva, qualidades cujos efeitos podem ser observados e sentidos na pele.
Thomas Mann começa o sétimo capítulo de A Montanha Mágica, romance em que o tempo tem papel de protagonista, com a indagação seguinte: “Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si?”. Ele próprio responde que não. “Uma história que rezasse: `O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu curso¿, e assim por diante, nenhuma pessoa sã poderia considerar história.” A narrativa precisa de fatos. Uma vez encadeados os fatos, a narrativa “dá um conteúdo ao tempo”, “enche-o de uma forma decente”, “assinala-o”, e faz com que “tenha algum valor próprio”.
Eis outra tentativa de driblar o mistério do tempo: assinalando-o com os fatos. O autor alemão prossegue enumerando os fatos da narrativa que o ocupa. Já nós outros damos sentido ao tempo organizando os fatos de nossa história pessoal ou familiar, da história do nosso país ou do mundo, elaborando retrospectivas do ano ou comparando os fatos de um ano e outro. Os anos se transmudam nos fatos contidos dentro deles.
Ha ha, te pegamos, tempo! Viraste uma sucessão frenética de conflitos, epopeias, anedotas. O tempo não deixa de soar algo disparatado e tolo, neste formato. Em todo caso perde o caráter assustador do indiferente fluxo que se sabe lá de onde veio e sabe-se lá para onde vai.

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