por José Nêumanne O Estado de São Paulo
Com experiência de professor aposentado da USP, ex-czar da economia na
ditadura, ex-constituinte, ex-parlamentar e ex-espírito santo de orelha
de dois presidentes nos (até agora) 12 anos e 9 meses de lulopetismo no
governo federal, Delfim Netto garantiu, em entrevista a Eliane
Cantanhêde, no Estado: “A Dilma é simplesmente uma trapalhona”. Didi
Mocó e Dedé no poder. E honesta! Mas definiu sua proposta de Orçamento
com déficit primário (mais gastos a pagar do que rendas a arrecadar)
como uma “barbeiragem”. E o pacote fiscal para debelar a crise, uma
“fraude”.
O papa de uma patota de economistas tidos e havidos como da maior
competência (até hoje atuantes), dono de uma inteligência comparável à
de Lula da Silva e uma cultura invejável, que o outro não tem, pelo
visto perdeu a paciência com madama gerenta incompetenta. Mas o brilho
de seu raciocínio não impede que se enxergue a impropriedade dessa
mistureba, que seu velho inspirador em lógica, Aristóteles, não
aceitaria. Déficit em Orçamento é ilícito, pois viola a Lei de
Responsabilidade Fiscal. E fraude não é sinônimo de honestidade nem no
mais permissivo dos dicionários.
No fragor da batalha pelo controle da Constituição de 1988, Delfim, que
então já se dizia “socialista fabiano”, fez uma profecia que hoje se
mostra sábia, mas, ao contrário do que se podia deduzir à época, menos
devastadora do que de fato viria a ser. Para ele, convinha dar o poder
ao Partido dos Trabalhadores, de seu colega parlamentar Luiz Inácio Lula
da Silva, de vez que só assim o País se livraria do mal que o mito de
santidade da esquerda fazia. Em 2014, às vésperas de uma eleição que
ainda parecia indefinida entre a presidente petista e o líder tucano da
oposição, Aécio Neves, Delfim vaticinou a interlocutores mais próximos
que ela ganharia a eleição. Mas, em seu segundo mandato, os resultados
da “nova política econômica” (conforme a inspiração leninista)
produziriam tal crise que o governo chegaria ao fim antes dos quatro
anos previstos.
Por incrível que pareça, as duas profecias são coerentes entre si.
Embora o profeta tenha aconselhado o padim Lula Romão Batista de Caetés
em seus dois mandatos e também tenha sido ouvido pela afilhada e
sucessora deste, não há como cobrar de Delfim o fato de tal purgatório
ter durado tanto. O bom senso do Macunaíma do ABC, com a economia
tutelada por Antônio Palocci e Henrique Meirelles, guiou a nau capitânia
por mares sem procelas. E, assim, a navegação continuou beneficiada
pelo vento de popa, usando a metáfora náutica que deu título às memórias
de outro célebre economista da época do milagre econômico da ditadura
militar e ex-colega dos dois no Legislativo, Roberto Campos.
O vento de proa que impulsionou a nau sem rumo para a tempestade a pegou
no pior momento: quando ao leme estava uma capitã sem habilidades para
comandar uma canoa de pescador e completamente inabilitada para dar rumo
ao bote salva-vidas que é a situação de momento. Na crise produzida
pelo delírio consumista de seu padroeiro ou pelas próprias convicções
intervencionistas, a comandanta faz sua “travessia” sem Moisés nem a
bonança da conjuntura internacional favorável. Se ela içar as
bujarronas, o temporal destroçará o barco. Se as recolher, o afundará
por inércia.
Faltam-lhe perícia, humildade e sensatez. Resta-lhe apelar para a boia à
mão: a velha democracia burguesa, que ela sempre odiou, tal como
Robespierre e Marat. “Ei, vocês aí da oposição: não venham de borzeguins
ao leito. Fui eleita pela maioria dos cidadãos e vocês têm de aceitar a
vontade das urnas” – berra, teimosamente, essa meia-verdade. Mas é cada
vez menos ouvida, pois a tempestade rugindo e os vagalhões minando a
estrutura do barquinho sem rumo tornam sua gritaria, normalmente
incompreensível, uma algaravia incapaz de iludir náufragos ameaçados
pelo afogamento.
A tarefa dela não é fácil. Enquanto se agarra ao bote repetindo “eu sou a
democracia”, bagagens e outros passageiros são jogados ao mar sem dó.
Há 15 dias, neste pedaço de página, referi-me a 1 milhão de
trabalhadores perdendo o emprego neste primeiro ano de segundo
desgoverno. Agora, já se fala em 1,6 milhão – 60% mais!
E como instrumento de navegação ela só dispõe da ilusão de que é A
democracia. Pois, favorita dos mortadelas, ela teve mais votos do que o
candidato dos coxinhas há dez meses e meio. Mas sua democracia não é a
de Danton e Jefferson. Em sua cabeça, entorpecida por Marx, Lenin,
Stalin, Lula e devotos do pixuleco, ela a encara como um pôquer
disputado a cada quatro anos, com cacife assegurado pelo período
intermediário para criar ministérios e outros penduricalhos para a
barganha com aliados.
Ela se diz heroína da liberdade, ainda que a ditadura que ela combatia e
a que ela almejava fossem siamesas, embora antípodas. A mentira
bastaria para desqualificar sua versão do regime, que não é o menos ruim
de todos (apud Churchill), mas o melhor para a cupinchada. E há quem
reze “diuturnamentee noturnamente” para ela pedir perdão, pagar
penitência dividindo o doce e prosseguir!
Até hoje, lendo no tele-prompter patacoadas de seu marqueteiro Patinhas,
Dilma garante que arriscou a vida pela liberdade, mas não se sente na
obrigação de mostrar nenhum dos muitos documentos de grupos armados
contra os milicos que tenha citado uma vez só a palavra “democracia”.
Isso já faz tempo e ela está ocupada demais para rememorar
inconveniências. Mas quando é que ela vai enfrentar os panelaços num
pronunciamento público em cadeia de rádio e televisão para execrar o que
Genoino, Dirceu e Delúbio fizeram do PT? E afastar Edinho, Oliva e
outros acusados dessa confusão criminosa entre coisa pública e república
(hospedaria) de quem aderiu ao capitalismo do propinoduto? Podia até
aproveitar e exigir atitude similar dos adversários tucanos com o
Aloysio lá deles, ora!
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