por Arnaldo Jabor O Globo
Apavora a marcha a ré que nos ameaça, por falta de memória e burrice do poder
Deu no que deu: tudo o que era solido no país hoje se desmancha no ar. A
catástrofe era inevitável porque eles não têm memória (ou não querem
ter) do passado de erros que a chamada “esquerda” cometeu, nos últimos
50 anos.
Eu já fui do partido comunista. Por três semanas. Nunca vi nada tão
chato como reunião de comunas. As discussões jamais contemplavam a
complexidade do processo brasileiro.
Tudo se dividia em três classes: o proletariado, a pequena burguesia e a
burguesia, todas dominadas pelo chamado “imperialismo norte-americano” —
a palavra mágica que tudo explicava. O que mais me intrigava e irritava
eram as toscas premissas para a ação política.
Dentro desse enorme país, raciocinávamos com as mesmas ideias que
ressoam até hoje nas reuniões dos herdeiros da ilusão: o PT, melhor, o
Ex-PT, hoje oportunista e de direita. E, pior, essa estupidez é ensinada
pelos professores nas universidades, catequizando jovens desinformados.
Mas eu, na minha vacilação de “pequeno- burguês da Zona Sul”, olhava do
meu canto a sutil burrice nas ideias e sentia que alguma coisa estava
terrivelmente errada naquela esperança arrogante. Eu via o reducionismo,
a insensatez nas discussões, não porque eu fosse mais lúcido, mas
porque o delírio era muito visível. Qualquer dúvida levantada contra a
“linha justa” era denunciada como “revisionismo” ou alienação.”
Discutíamos infinitamente para chegar à mesma conclusão da qual
partíamos. Ideologia é isso. Quase todos esses cacoetes derivavam de um
só sentimento: “Somos superiores”.
Antes do golpe de 1964, antes da luta armada pós-68, já vivíamos na
ilusão de um programa para o país feito de projetos inócuos como
“reformas de base”, reforma urbana, agrária etc., mas ninguém tinha a
mínima ideia de como implantá-las. Vivíamos de frases, pois a
competência era coisa de gente de “direita”, que raciocinava dentro do
“sistema”. Era espantoso o autoengano. Antes do golpe, nós nos
comportávamos como destinados a uma missão, que seria fácil. Falávamos
uma língua própria, gestos próprios, e contávamos até com o presidente
da República para dar partida à revolução. Relacionávamo-nos como
companheiros de uma grande missão. Estava tudo nítido na maneira de
falar, nas certezas irremovíveis, no sentimento de especialidade em
relação ao resto do país; e até mesmo durante a ditadura, nossa dor nos
enobrecia como “vitimas do mal”, sentindo um certo orgulho de nossa
solidão.
O golpe de 64 não aconteceu apenas por causa das marchas da família com
Deus, mas deu-se pela absoluta ignorância da população sobre esses
desejos teóricos sem base na realidade. Ninguém sabia de nada. Falávamos
de operários e camponeses como se eles estivessem de mãos dadas conosco
— os “revolucionários”. O espantoso foi a facilidade com que se deu o
Golpe. Descobrimos (alguns) que não tínhamos nada nas mãos, que nosso
sonho tinha virado um pesadelo. E até hoje muita gente não se dá conta
disso. E mais: esses caras que estão no poder acham que estão retomando a
agenda de 1963, na base do “antes não deu, mas agora vamos”.
No entanto, dentro do curto espaço democrático que ainda havia, o Brasil
ficou mais inteligível depois da queda de 1964. A desgraça nos ensinou
muito. Ficou mais claro que o buraco era mais embaixo, que a realidade
brasileira não se resumia a três ou quatro obviedades críticas. O golpe
sofisticou nosso entendimento. Mas os futuros e atuais petistas
renegaram essa evidência.
Depois, a barra pesou. O ano de 1968 foi o inicio de outro tipo de
ilusão. Derrotaríamos a ditadura com armas revolucionárias. Bela
proposta inexequível — foram muitos admiráveis heróis, mas, apesar
disso, estavam errados. A luta armada foi uma tragédia das ilusões
perdidas. Vimos então a espantosa eficiência da repressão. Foi um
massacre. Essa coragem dos guerrilheiros era inviável por causa da
mentalidade das tradicionais regras de luta armada clássica. A guerrilha
urbana trabalhava nas brechas escuras da realidade, secreta, fugindo da
morte, achando que iam derrotar o Exercito com meia-dúzia de revólveres
e assaltos a banco. A guerrilha foi heroica mas convencional. Havia
quase 40 grupos na luta armada.
Um dos celebrados líderes foi Carlos Marighella, herói voluntarista e
onipotente que, entre outros indícios de loucura, escreveu, no “Manual
de guerrilha” : “É necessário que todo guerrilheiro urbano tenha em
mente que somente poderá sobreviver se está disposto a matar os
policiais e todos aqueles dedicados à repressão, e se está
verdadeiramente dedicado a expropriar a riqueza dos grandes
capitalistas, dos latifundiários, e dos imperialistas.” Nunca disse
como. Leiam o resto na web.
O grande salto qualitativo, a grande vitória da guerrilha foi a
superação desse silêncio secreto por um gesto que repercutiu no mundo
todo: o sequestro do embaixador americano por Gabeira e seu grupo. Foi
um ato contemporâneo muito mais eficaz do que heroísmo e suicídios
secretos. Isso questionou a ditadura, expôs sua vergonhosa impotência
diante da imaginação dos guerreiros. A ditadura sentiu o golpe e
redobrou sua violência criminosa, mas sua mediocridade estava exposta.
Por isso me apavora a marcha a ré que nos ameaça, pela falta de memória e
burrice do poder. Agora, quando o capitalismo está na China e renasce
timidamente em Cuba, só resta a eles a companhia da Coreia do Norte.
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