por Demétrio Magnoli O Globo
A democracia tem suas regras. Candidatos que se elegem pelo recurso à mentira são implacavelmente punidos com a perda da legitimidade
“A CPMF é um imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito
negativo sobre o crescimento e quem paga é o pobre mesmo”. O
diagnóstico, de Delfim Netto, confidente econômico de Lula nos bons
tempos, expressa quase um consenso entre os economistas. Há razões de
sobra, no campo estritamente tributário, para o Congresso rejeitar a
volta do imposto ruim. Contudo, o motivo principal para a derrubada
encontra-se no campo da política.
Primeiro, na campanha eleitoral, Dilma Rousseff prometeu leite e mel: a
continuidade da política de expansão fiscal que conduziu o país ao
limiar da bancarrota. Depois, na hora do estelionato eleitoral, acenou
com uma breve travessia de austeridade: o ajuste fiscal cirúrgico que
seria pilotado pelo mestre dos mestres, um certo Joaquim Levy. Em
seguida, diante do fiasco do ajuste, enviou ao Congresso um atestado de
incompetência absoluta: o Orçamento deficitário que precipitou a perda
do grau de investimento. No fim da linha, acuada pela espada do
impeachment, a presidente lançou-se à aventura da tributação aleatória,
tentando ressuscitar o pior dos impostos. Ela quer o privilégio de
tratar os cidadãos como súditos e o conforto de governar sem fazer
escolhas.
A democracia tem suas regras. Candidatos que se elegem pelo recurso à
mentira são implacavelmente punidos com a perda da legitimidade. A
recuperação, sempre improvável, depende de um gesto dramático de
reconhecimento do desvio. No lugar desse gesto, Dilma preferiu apostar
num truque barato de ilusionismo, atribuindo a crise a imprevisíveis
fatores externos (a conjuntura internacional, a seca) e convocando os
serviços de Levy para aplicar um unguento sobre a ferida aberta. Por
alguma razão, ligada à nossa miséria intelectual, obteve ainda período
de graça, na forma de apelos empresariais à unidade política em torno do
ajuste fiscal, que reverberaram nos editoriais da imprensa. Não podia
dar certo, como não deu.
A política econômica não existe no vácuo ideológico, num compartimento
sanitizado e regulado exclusivamente pelas leis da lógica. O giro
anunciado pela ascensão de Levy dependia, para funcionar, do
reconhecimento explícito do fracasso da “nova matriz econômica” do
mandato original — e, portanto, de uma ruptura política completa com o
lulopetismo. A presidente, porém, entregou-se à missão impossível de
enganar o país por uma segunda vez, indicando que a Terra Prometida
situava-se logo além de túnel circunstancial, cuja travessia, penosa mas
curta, demandava apenas o ajuste fiscal. No conto infantil que narrou,
Levy cuidaria da travessia, enquanto Nelson Barbosa, o verdadeiro
teórico da “nova matriz econômica”, aguardaria no banco do passageiro
para retomar o volante junto com os primeiros raios de luz. A nova CPMF
nasceu da falência desse projeto, com a finalidade de vendar os olhos de
todos no momento em que o comboio da economia, descontrolado, desce
rumo ao precipício.
Levy, o “neoliberal”, cumpre a função de tenor no ato final da ópera
bufa da “nova matriz econômica”. Seu ajuste fiscal, inicialmente
apresentado como ato magistral de corte de gastos públicos, revela-se
agora, até para os mais néscios, como aquilo que efetivamente sempre
foi: uma derrama tributária mal disfarçada pela farsa da reforma
ministerial.
Operando como agente do lulopetismo, o superministro do Bradesco
pretende cobrar dos cidadãos os custos da irresponsabilidade fiscal de
Dilma, de forma a conservar intactos os alicerces da política econômica
que fracassou. A nova CPMF, muralha de proteção do passado, serve para
resistir à exigência de reformas econômicas estruturais capazes de
recompor a produtividade e estimular o investimento privado.
Dilma teve uma oportunidade derradeira em março, quando cerca de 1,5
milhão de brasileiros ocuparam as ruas para decretar o fim das ilusões.
Naquela ocasião, ela ainda se salvaria se admitisse que mentiu aos
eleitores e, dinamitando as pontes com o PT, organizasse um governo de
crise assentado sobre uma nova política econômica. Mas a presidente
optou pela fidelidade ao lulopetismo e, no fim das contas, às suas
próprias convicções ideológicas. Ela dobrou a dose da mentira,
enredando-se numa teia política cada vez mais intrincada. Hoje,
tornou-se refém dos caciques do PMDB, que dançam uma quadrilha em volta
da chave do impeachment. A proposta de restauração da CPMF surge porque o
ajuste fiscal é, nos apropriados adjetivos de Delfim Netto, “uma
fraude, um truque, uma decepção”. A nova CPMF não passa de um
prolongamento da agonia de um governo prostrado, impotente para tomar
decisões estratégicas.
A derrubada da nova CPMF no Congresso não deve ser vista como uma recusa
a encarar a realidade. Dilma foi eleita, em 2010, sobre uma plataforma
política erguida no segundo mandato de Lula que se articulava em torno
do gasto público, do crédito, do subsídio e do consumo. A farra fiscal
do governo converteu-se em bens eletrônicos e despesas com serviços,
investimentos empresariais extravagantes financiados pelo BNDES,
moradias populares de baixa qualidade, importações insustentáveis,
contas subsidiadas de combustíveis e eletricidade. O país pagará,
inevitavelmente, a fatura das escolhas políticas feitas nas urnas. Não
deve, porém, oferecer um cheque em branco à presidente arrogante e
impenitente que ainda simula governar.
“Chega de impostos”, como se propaga aqui e ali, não é a resposta certa à
embriaguez nacional promovida pelo lulopetismo. Uma travessia fiscal
será feita, cedo ou tarde, por uma combinação equilibrada de cortes de
gastos públicos e aumentos seletivos de impostos. Contudo, a condição
para ela só pode ser a decisão nacional de não repetir a experiência
desastrosa do passado recente. O Brasil precisa, finalmente, olhar para
frente. É por esse motivo que os congressistas têm o dever cívico de
derrotar a nova CPMF.
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