Gaudêncio Torquato COM O BLOG DO NOBLAT O GLOBO
O Brasil vive a maior crise de sua contemporaneidade. Não se trata
apenas de uma soma de crises que se imbricam nas teias da economia, da
política, da água e da energia, entre outras. Trata-se, sobretudo, de
uma crise moral que solapa as bases da credibilidade nas instituições e
em seus atores. Daí a dúvida: quando abriremos o ciclo de moralização da
vida política no país? Há um fio de esperança? A resposta é sim.
Vejamos as hipóteses. Três vertentes se apresentam como as mais
prováveis na esfera das ocorrências futuras: a primeira é de que a atual
crise será ultrapassada pela próxima; a segunda, ancorada na
banalização, mostra o brasileiro cada vez mais descrente da política; e a
terceira, regada a esperança, é capaz de acreditar ser possível uma
flor nascer no pântano.
As duas primeiras vertentes são maléficas para o caráter nacional.
Comparam-se à maldição de Sísifo. Expliquemos. Condenado a carregar uma
pedra sobre os ombros e depositá-la no cume da montanha, o matreiro rei
de Corinto nunca irá a conseguir o feito. O castigo que os deuses lhe
deram no Hades, o mundo dos mortos, era definitivo: recomeçar a tarefa
todos os dias por toda a eternidade.
Ora, o brasileiro sente que Sísifo está à nossa espreita. Há menos de um
ano, as pessoas achavam que a situação começava a melhorar. A pedra
poderia chegar ao topo da montanha; hoje, sentem que a coisa está
prestes a degringolar. Sísifo, mais uma vez, fracassa. Pois esse é o
Brasil do eterno retorno, a repetir o maçante exercício de ver
frustradas suas expectativas.
O desalento se instala, sob a banalização de escândalos que abala a
confiança social. Daí a indignação, a revolta, a mobilização das ruas,
na esteira de uma reação aos desmandos e ilícitos. Críticas ácidas
jorram de esquadrões da classe média, cuja repulsa aos eventos da
Operação Lava Jato emerge de forma contundente na mídia.
O fio de luz no fim do túnel é a racionalidade fincando suas raízes.
Expande-se a locução social com a tuba de ressonância midiática fazendo
eco. As camadas – com acesso à TV e ao rádio – vêem a lama escorrer da
arquitetura política e aplaudem as prisões de figuras de alto calibre.
A flor nascerá no lamaçal. A crise que assola o Parlamento deixa os
atores atordoados. A mobilização das ruas propaga um sentimento pátrio e
uma reação em cadeia. Cristaliza-se a convicção de que a corrupção e a
infração a valores morais hão de ser contidos pelas barreiras que a
sociedade começa a construir.
Do sentimento de que está sempre vendo as mesmas coisas, o brasileiro
extrai a argamassa para construir o edifício do amanhã. Nessa
construção, serão plantadas as sementes de reformas fundamentais, a
partir da reforma política e de um novo pacto federativo. Já não dá mais
para conviver com um modelo político incompatível com uma estrutura
racional de Estado e uma gestão moderna de democracia. A continuar a
velha modelagem, cairemos fatalmente na ingovernabilidade, com o
agravamento das tensões entre instituições e insegurança social.
É possível, até, que não façamos, de imediato, uma reforma política
completa. O importante, nesse momento, é tentar reformar o sistema
político-eleitoral; modernizar a estrutura do Estado, a partir de
limites sobre competências entre Poderes (pacto federativo) com
redefinição de atribuições entre entes; completar a legislação
infraconstitucional, que mantém buracos desde 1988; melhorar a qualidade
dos serviços públicos; e estancar a escalada tributária.
Acabamos de atualizar os eixos das relações do trabalho com a aprovação
na Camara do PL 4330 sobre Terceirização. O Senado não pode e não deve
deter esse projeto, sob pena de ser contrário à modernização do país.
Precisamos seguir adiante.
Não dá mais para esticar o cordão das crises. O xeque-mate no jogo é a
moldura da economia. Diques pontuais para atenuar a onda da recessão,
que já dá sinais de vida, só serão eficazes se acompanhados de ajustes
em outras frentes. Nunca esteve tão próxima a possibilidade de colhermos
uma flor do pântano. A partir das sementes que os centros sociais
espalham pelo seu terreno e que deverão chegar até os habitantes da base
da pirâmide.
Há um preceito da ciência política pelo qual as grandes mudanças da
História são produzidas quando os favorecidos e apaniguados do poder
não têm a capacidade para transformá-lo em força, enquanto os que
dispõem de pequeno poderio aproveitam essa capacidade ao máximo para
convertê-la em força crescente. Esse é um fenômeno que se instala entre
nós. É o que estamos presenciando. Se faltar vontade no andar de cima,
sobrará revolta no andar debaixo. No jogo de xadrez, existe a
possibilidade de o peão adquirir tanta força quanto o bispo.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
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