Reis Friede
Enquanto
se consumiram, e em muitos aspectos continuam a se consumir, mesmo após
a conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
elevados recursos, tempo e mobilizações nos âmbitos federal, estadual e
municipal para investigar as graves violações de direitos humanos
ocorridas há quase meio século e, portanto, pertinentes ao âmbito
exclusivamente histórico, muito mais graves (até porque atuais)
violações de direitos humanos continuam a ser, sistematicamente,
perpetradas no Brasil nos mais variados setores da sociedade civil. A
contínua perseguição de minorias como os negros, homossexuais,
indígenas, dentre outros, além da manutenção do preconceito de gênero e
das violentas ações de intolerância religiosa continua pesando
negativamente nas estatísticas do país. No que se refere aos
pejorativamente denominados "gays", o Escritório Nacional de Direitos
Humanos recebeu mais de três mil denúncias de violência em 2012, o que
representou um crescimento de 166% em relação a 2011 e, ainda, segundo
relatórios do Grupo Gay da Bahia (GGB), mais de 600 homossexuais foram
assassinados nos últimos dois anos. Por outro prisma, é cediço
reconhecer que as violentas ações de intolerância religiosa vis-à-vis
com a escandalosa omissão das autoridades também se somam a desafiar a
frágil qualificação "democrática" do atual Estado de Direito brasileiro.
"A
tal consolidação da democracia brasileira é uma história da carochinha,
um conto pra boi dormir. A intolerância e as tendências autoritárias
perpassam com vigor a sociedade brasileira. Querem dados? As taxas de
homicídio, as de estupro, inclusive de crianças, as de violência
policial, a vigência de uma assustadora homofobia, a prática disseminada
da tortura e sua aceitação por amplos segmentos da sociedade." (REIS FILHO, Daniel Aarão. Revista Época, 31 Mar 2014).
Seguindo
adiante, de extrema gravidade são também as constatações do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) no que concerne a situação das instituições
prisionais brasileiras, que permitem a absoluta e recorrente degradação
da dignidade humana. Tal como no passado, agentes do Estado Oficial
ignoram os mais elementares direitos constitucionais expressos e
legitimamente assegurados para todo o povo brasileiro. Estes, quer por
atos comissivos, quer por simples omissões, perpetram as mais bárbaras
ações, conforme constatou o CNJ: pessoas que, após simples
interrogatório, encontram-se ilegalmente presas por mais de seis anos,
muitas algemadas por mais de 30 dias nos corredores das cadeias, sem
banho ou visitas e, pasmem, defecando sobre seus próprios pés.
Na
era da “consagração dos direitos humanos”, essa realidade se configura
como paradoxal, não parecendo, de fato, diversa das encontradas nas
masmorras medievais e nas fortalezas construídas no início do século
XIX, em que muros, células, ferrolhos e castigos visavam “modelar” os
indivíduos desviantes das “normas e condutas”, muitos destes
encarcerados pelo simples fato de serem diferentes. Hoje, consoante
dados do
sistema de Informações Penitenciárias, a taxa de encarceramento do país
aumentou quase 30% nos últimos cinco anos. A população adulta em
prisões já passa de meio milhão de pessoas, o que excede em 43% a
capacidade das penitenciárias.
O Relatório Mundial de Direitos Humanos, edição de 2014, elaborado pela ONG Human Rights Watch apresenta
os desafios que o País ainda precisa enfrentar como a violência
policial, o uso da tortura e a superlotação das prisões. Além do número
excedente de presos por espaço e das más condições das cadeias, a tortura - não a pretérita, mas a presente
nos dias atuais -, foi classificada pela ONG como um problema crônico
nas delegacias de polícia e nas prisões brasileiras. As práticas
abusivas de policiais, iguais às perpetuadas, com a repulsiva tolerância
do Estado, por parte de muitos chefes de facções, são motivos de
preocupação da instituição, porque tanto os agentes da lei que cometem
abusos contra os presos como os agentes do denominado Estado Paralelo
raramente respondem judicialmente pelos crimes.
Dados
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também mostram que 1.890
pessoas morreram em operações policiais no Brasil em 2012, uma média de
cinco pessoas por dia. Enquanto nas cidades a preocupação é com a ação
das polícias e dos denominados "milicianos", no campo, os conflitos de
terra levam a uma verdadeira batalha entre ativistas rurais e indígenas e
donos de terra. Consoante informações da Comissão Pastoral da Terra, em
2012, 36 pessoas envolvidas em conflitos de terra foram mortas e 77
foram vítimas de tentativa de homicídio em todo o país.
Insta salientar que somente entre 2009 e 2011, o CNJ registrou a existência de 180 cadáveres cujas mortes simplesmente "não possuem causa",
o que, estatisticamente, é um número proporcionalmente muito superior -
e verdadeiramente estarrecedor - em relação aos mortos e desaparecidos
em torturas durante todos os 20 anos de vigência do chamado Regime
Militar, e, o que é mais grave, estão ocorrendo no presente, não representando meras ilações históricas.
Ante
toda essa sorte de violências e atrocidades acima mencionada,
constata-se que, da mesma forma que o Presidente Figueiredo, no
exercício de seu governo, perdeu a oportunidade histórica de investigar e
punir os crimes perpetrados pelos radicais de direita após a edição da
Lei de Anistia (v. g. atentado ao Riocentro, entre outros), hoje
prescritos, inclusive por reconhecimento judicial, a CNV igualmente
perdeu a idêntica oportunidade de contribuir efetivamente para o
fortalecimento do respeito aos direitos humanos no país.
Frise-se:
não se está questionando a necessidade e a oportunidade de esclarecer a
verdadeira - e, portanto, isenta - história dos horrores perpetrados
tanto pela direita radical torturadora como pela esquerda radical terrorista;
o problema verificado é que a busca por esta verdade ocorreu através de
uma apuração visivelmente contaminada ideologicamente. Ora, se não traz
a verdade imparcial - que poderia contribuir para o respeito aos
direitos humanos pelas gerações atual e futuras -, esta busca representa
um gasto desnecessário do erário público, dinheiro este que poderia
estar sendo direcionado para o combate às correntes violações aqui
mencionadas.
"Se
a pretensão da Comissão da Verdade era reproduzir os fatos ocorridos
durante o regime militar 'em sua plenitude, sem ocultamentos', como
disse a presidente Dilma Rousseff ao instalá-la, há dois anos e sete
meses, esse objetivo não foi atingido." (Editorial do jornal "O Estado de São Paulo", 11 Dez 2014, p. A3).
Deve
ser consignado, em tom de sublime advertência, que a apuração
restringiu-se às violações cometidas pelos agentes do Estado, limitação
esta que não estava prevista na lei que criou a Comissão.
Dessa feita, assim como não se pode deixar de reconhecer a importância do Governo Geisel para a abertura política, do Governo Figueiredo para a consolidação desta mesma distensão político-ideológica, do Governo Sarney para a efetivação da democracia política, do Governo Fernando Henrique Cardoso para a estabilidade econômica e do Governo Lula para a inclusão social, é hora do Governo Dilma Rousseff, em resposta ao clamor popular que a elegeu para dois mandatos presidenciais, estabelecer-se como o governo dos direitos humanos, resgatando o nosso País das trevas que muito comprometem a respeitabilidade com que tanto sonhamos.
Portanto,
resta urgente que providências efetivas sejam tomadas, notadamente pelo
Executivo, sendo certo que é hora de nossa capitã-mor deslocar a
lanterna da popa, redirecionando-a para a proa do navio, escrevendo o seu importante legado na área de direitos humanos para as atuais e futuras gerações, que clamam por um novo Brasil mais digno e humano, sem deixar de buscar a verdade histórica, e
não apenas uma versão unilateral da história, como bem adverte, em
brilhante ensaio, o insuspeito historiador Marco Antonio Villa (Os
gigolôs da memória, O Globo, Rio de Janeiro, 8 ago. 2014, p. 18).
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