Gustavo H.B.Franco - O Estado de S.PaulO
A
publicação do balanço da Petrobrás para 2014 abre um capítulo
particularmente revelador de um desmoronamento amplo, espetacular e de
dimensões históricas, mesmo que ainda incompleto. Diante dessa
catástrofe, espera-se que nunca mais o País ouça sem um arrepio os
conceitos que orientaram esse experimento de petro-populismo,
heterodoxia fiscal e "capitalismo de quadrilhas" (na falta de melhor
tradução para "crony capitalism", um fenômeno já bem identificado em
outros países).
É
de se esperar que esse terremoto vá bem além da candidata eleita, ou da
economia, que já vinha mal, pois atacará de frente um conjunto de
ideias, ou uma ordem que seria simplório designar apenas como petista,
pois vai muito além dos patéticos personagens associados à tesouraria do
PT, seus líderes encarcerados e amigos da empreita. O País quer um novo
paradigma em matéria de política, e de política econômica, não é outra
coisa o que se ouve pelas ruas e pelos botecos.
Essa
rocambolesca "ascensão e queda" não é assunto novo, e já havia recebido
marcos definidores nas duas capas da The Economist: em novembro de
2009, o Cristo Redentor decolava, mas em setembro de 2013, voava
destrambelhado como um pacote bêbado. Diante dos acontecimentos
posteriores, a segunda capa, que alguns viram como um insulto, hoje soa
como uma piada de salão, quase uma gentileza. As más notícias dos
últimos meses não conhecem precedente em nossa história, tanto pela
torpeza quanto pelos valores.
A
decadência desse império ocorreu de forma inacreditavelmente veloz,
mesmo considerando os padrões do mundo hiperconectado em que vivemos, e
decorre de pelo menos três pragas, a primeira, curiosamente, relacionada
com uma excelente notícia, um presente da Natureza, a heroica
descoberta de um tesouro petrolífero onde ninguém havia se atrevido a
procurar.
A
segunda foi a utilização da crise de 2008 como um pretexto para uma
grande inflexão para pior na política fiscal, agora consagrada no que
tem sido chamado de "escândalo das pedaladas", e o mesmo para a política
industrial, com seus campeões e favoritos.
A
terceira, e mais hedionda, é a da corrupção, que potencializa e explica
em boa medida a vilania exibida no desenvolvimento das duas primeiras
linhas de conduta, pois sua presença parece "sistemática" a partir de
2004, segundo testemunha, viciando muitos processos decisórios.
Mais
detalhe sobre cada uma dessas pragas: a primeira tem a ver com o modo
como Lula e o PT definiram a estratégia do País diante da descoberta do
pré-sal. Reveladoramente, o debate começou pelo fim, com a vinculação
dos ganhos à educação, e com a distribuição de royalties para unidades
federadas, criando um mecanismo de socialização dos "rents" para servir
como espinha dorsal de um "petro-populismo" semelhante aos de Venezuela e
Rússia. Nesse contexto, é claro que era preciso estatizar o mais
possível essa riqueza, sem muita conta sobre os investimentos que a
Petrobrás teria de fazer, pois o cálculo político, este sim, muito
preciso, era sobre como se usar o Tesouro para cooptar os entes
federados. É fortíssimo, no Brasil, esse DNA rentista, propenso ao
extrativismo, e avesso ao suor, ao individualismo e à produtividade. Que
melhor redenção, ou que melhor pretexto para abandonar agendas
reformistas e modernizadoras que descobrir petróleo?
Era a praga da displicência, versão caribenha do que se conhece como "doença holandesa".
A
segunda maldição teve de ver com a crise de 2008 e com a sensação de
que o capitalismo ocidental estava acabado, que a índole perversa dos
mercados jamais poderia levar ao bem comum senão debaixo de pesada
regulação e que John Maynard Keynes, como dom Sebastião, retornava
triunfal das brumas do oceano na versão idealizada em Campinas. Para
alguns economistas locais, cujos relógios pararam em 1936, a ocasião era
perfeita para recuperar as "políticas anticíclicas", das quais não se
ouvia há décadas. Disseminou-se, ademais, exaltação ao capitalismo de
Estado, modelo chinês, descontaminado das liturgias ocidentais como
democracia e transparência, e o conjunto definido pela Goldman Sachs
como Brics começou a levar a sério suas escassas semelhanças. Era o
apogeu da ilusão na existência de "vida extraterrestre" e na "ciência
alternativa": eis a "Nova Matriz Macroeconômica", a praga da
irresponsabilidade.
A
terceira praga veio dos porões onde se definiam os aspectos
operacionais do sonho petro-populista-heterodoxo: os investimentos
necessários, o conteúdo nacional, os campeões, as desonerações e as
pedaladas, parece pouco provável que esses assuntos tenham sido
decididos por gente inocente em ambientes republicanos. As
possibilidades de entrelaçamento entre interesses públicos e privados
nessa "Nova Matriz" eram imensas, necessárias e inevitáveis, e assim o
cordial capitalismo de laços naturalmente desceu vários andares na
escala da moralidade.
O
Brasil se torna um curioso caso de país ex-comunista sem nunca ter
sido, e que, bastante tempo depois da Queda do Muro, procurava imitar os
traços mais pervertidos de alguns países que foram socialistas por
longo tempo.
Sete
anos após, nem o mais neoliberal dos profetas poderia imaginar que o
sonho petista petro-populista ia se converter nessa gororoba que tem
assolado o noticiário diário e que ganhou do presidente da Petrobrás uma
definição em uma única palavra: vergonha, disse ele, ao reconhecer mais
de R$ 50 bilhões em baixas contábeis.
A
publicação do balanço auditado da Petrobrás é um fato histórico, sem
ser novidade, pois foi uma confissão formal e irretratável. A companhia
contabilizou suas "despesas" com corrupção em R$ 6 bilhões com a
aplicação do porcentual de 3%, informação proveniente das delações no
âmbito da Operação Lava Jato, sobre todos os contratos com as empresas
citadas na investigação durante o período que vai de 2004 a 2012. O
reconhecimento oficial da desonestidade, graças a um dispositivo da
legislação americana, abre imensas possibilidades, e levanta múltiplas
questões.
Os
números para baixas contábeis são quase 10 vezes maiores que os da
corrupção, e os de perda de valor da companhia talvez 30 ou 40 vezes
maiores. Lembrando do professor Mario Henrique Simonsen e de sua lógica
ferina, é fácil ver que teria saído muito mais barato para os acionistas
ter pago apenas as propinas e não ter implementado o "novo modelo". Ou
seja, a incompetência combinada à megalomania custou muito mais que a
corrupção e levou a Petrobrás a um nível de endividamento imprudente,
mais ou menos onde se encontra a União nesse momento, ambas sob o
imperativo de "desalavancar".
A
corrupção é a parte menor na conta, é verdade, mas vale lembrar aos que
estão à espera de um Fiat Elba que o modelo está fora de linha, os
tempos são outros, mas se trabalharmos com o Novo Fiat Uno, custando
perto de R$ 35 mil, o balanço da Petrobrás indica que a corrupção
oficialmente reconhecida equivale a 171.429 automóveis Fiat Uno. É mais
de dois meses de produção à plena capacidade.
EXTRAÍDADEDIPLOMATIZZANDO
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