EDITORIAL DO ESTADÃO
Vigora no imaginário coletivo brasileiro a ideia de que gente na rua é
poder. Se uma causa conseguir levar as pessoas à rua, tal causa sairá
vencedora. Afinal, não foi isso o que se pensou nas Diretas-Já? Não foi
isso o que ocorreu no impeachment de Collor?
Mas a ideia de que o povo na rua consegue o que quer nem sempre
corresponde aos fatos, embora se fundamente no pressuposto de que, numa
democracia, o poder está nas mãos do povo.
Também essa afirmação precisa ser matizada. Não estamos numa anarquia,
onde quem grita mais forte e reúne o grupo mais ruidoso vence. Numa
democracia representativa, o poder de arregimentar não é sinônimo
perfeito de poder político. O povo tem o poder em suas mãos quando vota.
Depois, ele é transferido temporariamente aos seus representantes.
Mas, então, qual é o poder do povo nas ruas? Obviamente, ele exerce
influência, tem poder. Mas tal poder é exercido de forma indireta. A
atuação nas ruas é vitoriosa apenas quando consegue modificar os
cálculos políticos de quem detém o poder. Por exemplo, não basta que a
maioria da população diga que Dilma Rousseff merece o impeachment. As
pessoas que detêm o poder de interromper o mandato da presidente - no
caso, os parlamentares - precisam se convencer da realidade prática de
que, sem Dilma, as coisas ficarão melhores. Dizer simplesmente que, com
Dilma, as coisas estão ruins não tem, por si só, força política.
Estar na rua não basta para mudar destinos políticos. Tornou-se hábito,
por exemplo, falar que o regime militar acabou porque o povo foi às
ruas. A ideia é bonita. Mas, analisados os fatos, fica evidente que o
regime militar acabou, no momento em que acabou, por uma decisão
política dos próprios militares. A versão de que o povo nas ruas alterou
significativamente a história é uma construção teórica posterior. Muito
bonita, repita-se, mas falsa. Alguns dirão: mesmo que não seja de todo
verdade, essa construção ressalta a importância da participação popular
nos acontecimentos históricos. Mas a democracia se constrói à base de
fatos reais e argumentos consistentes, e não de meras idealizações.
Criar mitos que falseiam a realidade não leva as pessoas a ter
influência prática na vida pública, que é o que importa numa democracia.
Reconhecer que o povo nas ruas não tem o poder que se imagina não
significa retirar a legitimidade das manifestações nas ruas. Ao
contrário. Ir às ruas é em si meritório, pois significa que cada um está
dedicando o seu tempo a promover algo que considera benéfico para a
sociedade. A questão está em fazer essa mobilização gerar efeitos
práticos, políticos. Daí a importância de entender como funcionam os
mecanismos de um regime democrático.
Também não significa que o sistema representativo seja perverso, como se
o poder tivesse sido usurpado do povo por alguns poucos. Há apenas uma
transferência temporária de poder a alguns representantes.
Tal sistema - embora, imperfeito - traz importantes benefícios. Ele não é
apenas uma solução prática diante da impossibilidade de que a população
decida continuamente sobre as questões públicas. Oferece a
possibilidade de um saudável distanciamento entre o poder decisório e o
poder da maioria, ao fornecer as condições práticas para a tomada de
decisões impopulares, mas absolutamente necessárias para a condução
responsável de uma nação.
E aqui se desvela outro aspecto fundamental da democracia representativa
- a responsabilidade pelas decisões, assegurada pelo caráter temporário
da transferência de poder. Responsabilidade que não existe, por
exemplo, nas manifestações de rua.
Todas essas questões sobre o exercício do poder podem parecer
complicadas. Não precisa e não deve ser assim. Cada um do povo deve ser
responsável por suas escolhas. Só assim os representantes assumirão a
sua responsabilidade pelo bem comum, em sintonia com o sentir da
população. São eles os responsáveis por traduzir no momento presente as
aspirações da população em consequências práticas, nesse equilíbrio
sempre instável da política, entre o desejável e o possível. A população
está dizendo o que considera ser desejável - e essa é a sua força.
Resta ver qual será a resposta daqueles que detêm o poder, tanto o
governo como a oposição.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
0 comments:
Postar um comentário