Ana Maria Machado O GLOBO
Agora que a inflação volta, sobem preços de alimentos e cortes na Educação estão aí, passemos por cima dos filmetes de campanha
Além da situação notória, da economia à ética, passando pela política,
parte da crise de desesperança que o país atravessa tem a ver com a
perda de confiança e o sentimento generalizado de que andaram mentindo
muito (quem mentiu, cara pálida? Por que não diz claramente: DILMA ROUSSEFF?).
Ao longo do tempo, versões foram substituindo fatos. Muita gente acabou
acreditando no simulacro sem perceber que não correspondia ao real. Se
esse mecanismo se perpetua, a frustração é cada vez mais perigosa para o
país. Para evitá-la, vale a pena não se afastar dos fatos.
Não custa lembrar. Investigação não é indiciamento — cuidado para não
identificar os dois processos e depois se queixar de que houve
arquivamento. Aliás, arquivar por falta de provas ou devido a
investigações mal conduzidas não é engavetar geral. E manifestação de
protesto não é terceiro turno, como se diz. Outra coisa: doação de
empresa para campanha não é ilegal. Ilegal é esconder isso ou depois
cobrar vantagens. Ou usar dinheiro que não era próprio, mas apenas
repassado dos cofres públicos, vindo de um sobrepreço em serviços
prestados ao governo, ou de empréstimos vantajosos vindos do Tesouro.
No Japão, é lei: empresa que negocia com o governo não pode ter qualquer
relação com funcionários do mesmo, nem para dar uma carona ou um
presentinho. Ou seja, pode-se ter leis que controlem, sem precisar
obrigar a votar na lista prévia feita pelo dirigente partidário, como
tentam nos empurrar goela abaixo. E não precisa haver campanhas tão
caras. Nem tantos partidos.
Outra briga com os fatos: fim de privilégios para espertalhões (que dão
trambique com pensões e aposentadorias ou querem se dar bem às custas de
seguro-desemprego) não é o fim dos direitos trabalhistas, mas um passo
para a moralidade e garantia de haver dinheiro para pagar a quem tem
direito. Há quem adote neta como filha para deixar pensão quando o avô
morrer (e se ela não casar de papel passado, pode ser para sempre). E
casos de idosos muito idosos que “casam” in extremis com
jovens muito jovens — benefício por décadas. Prazos distorcidos
propiciam abusos gritantes no seguro-desemprego. A presidente faz muito
bem em dar um basta nisso.
A média de idade das aposentadorias é 54 anos. O ministro da Previdência
fez bem em dizer que se aposentar aos 50 é um equívoco. Mas quando FH
disse que se aposentar antes dos 50 é coisa de vagabundo, a frase virou “aposentado é vagabundo”. Até hoje repetem isso, sem que jamais tenha sido dito por ele.
E na economia? Atribuindo os problemas a um ligeiro percalço porque a
Copa significou menos dias de produção, entre o primeiro e o segundo
turnos, o ministro Mantega afirmou: “Vai quebrar a cara quem apostar na
alta do dólar e na queda da bolsa”. Antes dos cem dias do novo governo,
temos o que se vê. Podia ter acrescentado “La garantía soy yo”,
como o trambiqueiro paraguaio da publicidade inesquecível. Será que o
ex-ministro da Economia paga a aposta de quem achava o contrário?
Em novembro, Mercadante comparou o ajuste fiscal a viajar num avião com
carga excessiva e, para se desfazer do peso, se jogar fora a turbina.
Agora caiu na real. O ministro, não o avião. Diz que é como ir ao
dentista — de vez em quando é necessário .
E o caso da analista do Santander? Acusando Aécio de ter ofendido uma
mulher, ao usar a palavra leviandade para se referir a Dilma, Lula usou
termos nada elegantes ao refutar a análise de uma profissional, feita
para a instituição bancária. Disse que ela “não entende p*&#*
nenhuma de Brasil”. Questionou que ela tivesse chegado a um cargo de
chefia, associou-a a investidores que inventam mentiras contra as outras
pessoas, acusou-a de terrorismo eleitoral e afirmou: “Pode mandar embora e dar o bônus dela pra mim, que eu sei como é que eu falo”.
Claro que sabe. Nisso de falar ele é imbatível. Desde quando o mantra
ainda era “nunca antes na história deste país”, agora espertamente
substituído por “sempre antes na história deste país”, para jogar a
culpa nos antecessores. Mandaram a analista embora, evidente. Se
tivessem repassado o bônus, Lula teria de devolvê-lo quando os fatos
comprovam quem estava com a razão.
Agora que a inflação volta, sobem os preços dos alimentos e os cortes na
Educação estão aí, passemos generosamente por cima dos filmetes de
campanha mostrando o sumiço do prato de comida e dos livros das mãos das
crianças, se a oposição ganhasse. E das acusações de que os juros iam
subir se o governo não fosse reeleito. Era só marquetagem mesmo, sem
compromisso com os fatos.
Mas não dá para sempre bancar os três macaquinhos que nada veem, nada
ouvem, nada dizem. Ninguém espera ver um figurão em cadeia nacional
reconhecendo que enganou o país. Mas admitir para si mesmo que se
enganou pode ajudar a descer do salto alto. A realidade é senhora e ao
longo do tempo os fatos se impõem. Pra que discutir com Madame
Realidade?
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
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