Marcos Augusto Gonçalves FOLHA DE SÃO PAULO
Na sequência das denúncias sobre a distribuição de dinheiro para
políticos e partidos da base do governo Lula, no episódio que ficou
conhecido como "mensalão", o PT e seus aliados passaram a alardear a
versão de que estaria em curso uma tentativa de "golpe" no país,
orquestrada pela direita com apoio da mídia, dos setores neoliberais e
do imperialismo norte-americano. A sublevação reacionária, como se sabe,
não aconteceu. Não houve pedido de impeachment, Lula foi reeleito e fez
sua sucessora, que, por sua vez, chegou ao segundo mandato.
Agora, mais uma vez, o petismo volta a alardear a suposta ameaça
golpista, desta vez diante das evidências de que setores do partido
estão no centro de um gigantesco esquema de corrupção na maior empresa
pública do país. Num contorcionismo histórico admirável, o agitprop do
partido nos leva de volta ao mundo da Guerra Fria, da URSS, da revolução
Cubana, da UDN, das Ligas Camponesas, e recoloca em cena as
circunstâncias que culminaram com a derrubada de João Goulart pelos
militares em 1964.
É ótimo, ainda mais tratando-se de uma jovem democracia
latino-americana, que se reitere a defesa dos preceitos constitucionais e
da normalidade institucional.
Melhor ainda que a esquerda, nem sempre disposta a defender a
"democracia burguesa" (e quase sempre simpática à "ditadura do
proletariado") mostre-se interessada em fazê-lo.
Ocorre que, apesar de manifestações isoladas de grupelhos
antidemocráticos, não há condições objetivas para uma intervenção
golpista no Brasil. Não há sustentação social, militar e política para
tanto, tampouco perspectivas de apoio internacional para uma aventura
desse tipo. De zero a 10, a chance é zero.
O intuito dessa fantasmagoria paranoica não parece ser outro que desviar
as atenções da profunda crise por que passam o PT e o governo federal. O
recurso de acenar com grandes ameaças "ex machina" em momentos de
dificuldade de governantes é tão velho quanto a política.
A estratégia da campanha contra o "golpismo" é terraplanar o território,
eliminar os relevos e estabelecer um ambiente de discussão política
primário, perfeitamente maniqueísta, em que tudo se resume a dois lados,
o bem contra o mal, a esquerda democrática contra a direita ditatorial,
os defensores da Petrobras contra os vendilhões.
Postas as coisas dessa maneira, não há o que discutir. Os indignados com
a corrupção e os insatisfeitos com o PT e o governo já estão
previamente desqualificados. Mesmo concedendo que não sejam
intencionalmente golpistas estão fazendo o jogo da direita autoritária. E
pouco importa se o próprio petismo aliou-se a defensores da ditadura,
como Sarney e Collor. Foi para o bem do povo.
Esse tipo de interdição do debate faz lembrar o período da ditadura
militar, quando a esquerda tradicional rejeitava as críticas que se
faziam aos países comunistas. Denunciar a sistemática perseguição a
intelectuais e homossexuais, por exemplo, em Cuba, na China e na URSS,
era uma atitude equivocada. Tratava-se, segundo os cardeais do PCB, PC
do B e congêneres, de uma questão "secundária", a ser silenciada.
Levantá-la era fazer o jogo do imperialismo e da direita, ou seja, dos
militares anticomunistas.
No mesmo sentido, trata-se agora de negar evidências e recalcar as
críticas aos rumos da esquerda, que tem hoje no PT seu partido
hegemônico -como foi, em outros tempos, o "partidão".
À época de sua fundação, a sigla de Lula, que nasceu de uma associação
do sindicalismo paulista com a Igreja Católica progressista,
intelectuais e grupos socialistas, apresentava-se como representante de
uma "esquerda moderna", em ruptura com o stalinismo e o populismo.
Todavia (como bem assinalou Demétrio Magnoli, em artigo para a
Ilustríssima, no domingo), o PT mudou de rumo e passou, décadas depois, a
encarnar um projeto neovarguista. Do cuidado inicial com alianças que
descaracterizassem sua proposta, uniu-se à velha esquerda antes
criticada (caso do PC do B de Aldo Rebelo, um aparelho oportunista com
palavrório nacional-popular mofado, que simpatiza com a Coreia do Norte e
se compõe com o agronegócio) e, pior ainda, associou-se a uma direita
lúmpen e corrupta em nome da "governabilidade".
Nesse movimento, a agenda moderna foi murchando. Questões como a
preservação ambiental, a descriminalização das drogas, a legalização do
aborto e a defesa dos direitos humanos e liberdades foram cedendo lugar a
um desenfreado pragmatismo desenvolvimentista, ao loteamento do Estado,
à busca do enriquecimento fácil, ao flerte com o capitalismo de Estado
(China e/ou Geisel), à rendição às bancadas religiosas e à cumplicidade
cínica com ditaduras e regimes autoritários.
Não quero incentivar ninguém a deixar de protestar contra golpistas,
pelo contrário. Mas convém reconhecer que a grande questão atual não
reside na ameaça de um golpe militar com apoio da UDN, para derrubar a
herança trabalhista de Vargas e a "ameaça comunista". Isso aconteceu há
50 anos.
Para o país, o ponto é saber como -e se– o governo desastrado de Dilma
Rousseff vai readquirir um mínimo de autoridade e bom senso, assumir
seus equívocos, restabelecer a confiança na economia e encontrar uma
saída para a crise que não destrua os progressos conquistados nas
últimas décadas. Para isso será preciso, como disse o jornalista João
Carlos de Oliveira, num post nas redes sociais, voltar a fazer política e
não pregação evangélica em defesa do indefensável.
Quanto ao PT, trata-se de parar de tapar o sol com a peneira, passar por
um processo de autocrítica e tentar recuperar condições morais e
políticas para redefinir uma agenda com vistas ao futuro. A do passado
já se exauriu.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
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