Raquel Rolnik FOLHA DE SÃO PAULO
Erra feio quem procura interpretar as manifestações de março como uma
espécie de pesquisa eleitoral na rua para verificar quem é contra ou a
favor da presidente e de seu partido, apesar da insistência nessa tese
por parte da coalizão econômico-política que governa o país desde
sempre, habituada a promover mudanças para deixar tudo como está.
Assim como ocorreu em junho de 2013, as manifestações do último dia 15
não podem ser lidas como voz uníssona. Pelo contrário, o que vimos foi
uma diversidade de vozes unificadas por um profundo sentimento de
indignação com o modo brasileiro de governar.
É verdade que, agora, mais do que em 2013, a revolta com os escândalos
de corrupção deu a tônica dos protestos. Nesta coluna, mais de uma vez,
aliás, já comentei como o tema da corrupção incide nas políticas
urbanas, a ponto de os processos decisórios estarem sobredeterminados
por interesses privados fortemente encravados no Estado.
O modelo do jogo político-eleitoral, ao qual está vinculada a prática da
corrupção, não apenas contamina o destino das finanças públicas,
desviando recursos, mas, principalmente, determina para onde e para quem
vão esses recursos e decide o que vai ou não ser feito em nossas
cidades.
Diante desse modelo, os canais de representação institucionais
encontram-se hoje fragilizados, tanto nas casas legislativas -as câmaras
municipais deixaram de ser espaço de elaboração e discussão de
políticas para operar na lógica de base governista versus oposição-,
como no Executivo, que, obrigado a acomodar interesses de sua base de
apoio, especialmente distribuindo cargos, esvazia sua capacidade de
elaborar, negociar e executar políticas públicas capazes de redirecionar
os rumos das cidades.
Por outro lado, os espaços de participação e democracia direta criados
sob pressão popular desde os anos 1990 ou estão também contaminados e
instrumentalizados sob a lógica partidária ou são escanteados dos
processos reais de elaboração de políticas e de tomada de decisão,
tornando-se fóruns -muitas vezes, irrelevantes.
As crises da água, da mobilidade e da moradia são produtos desse modo
brasileiro de governar. As ações governamentais devem apresentar
resultados em quatro anos e ser visíveis o suficiente para reeleger
mandatários, que precisam ter "o que mostrar" na propaganda.
Devem ainda ser capazes de acomodar interesses de empreiteiras,
concessionárias de serviços, incorporadoras e loteadores, e distribuir
benefícios individuais para suas bases, de modo que nas eleições se
obtenham os recursos para custear as campanhas.
Nesse contexto, o planejamento urbano, fundamental para enfrentar crises
como as mencionadas- que exigem, por sua própria natureza, ações de
longo prazo-, não tem a menor chance de existir e prosperar.
Enfrentar tal situação não depende de trocar de presidente ou de
partido. Vai além, inclusive, da tão necessária e urgente reforma
política, exigindo uma reforma mais profunda do Estado brasileiro. Mudar
para continuar exatamente como está é o que deseja a coalizão
econômico-política que, na prática, governa o país, a mesma que tenta
reduzir essa complexa questão a um ódio à presidente Dilma Rousseff e ao
Partido dos Trabalhadores. As ruas, felizmente, querem mais.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014
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