Fernando Gabeira O GLOBO
Depois das manifestações de domingo passado, o ex-diretor de Serviços da
Petrobras Renato Duque foi preso no Rio. A operação tem o nome “Que
país é esse?”. É uma alusão à frase de Duque quando foi preso pela
primeira vez: que país é esse? Mesmo sem saber ainda que país é esse, na
prisão de agora houve uma certeza temporal: era o primeiro dia depois
que milhões de brasileiros foram para as ruas contra a corrupção,
gritando “Fora Dilma”, “Fora PT”.
A reação do governo foi patética. Desde o princípio, fonte oficial espalhou que o movimento não tinha foco, era dispersivo.
Só mais tarde, na entrevista dos dois ministros, um de barba, outro sem
barba, um deles reconheceu que havia uma luta contra a corrupção. E veio
com a história de que ninguém mais do que o governo do PT combateu a
corrupção.
Interessante é que, na coletiva, não se perguntou: como um movimento
contra a corrupção pode, ao mesmo tempo, pedir a queda de um governo que
a combateu mais do que tudo?
Volto à questão do foco. Quem trabalha com imagem, pelo menos, sabe que
não é uma questão de muita controvérsia. Dez pessoas diante da imagem
desfocada tendem a dizer que ela está fora de foco. O governo desfocou
propositalmente as imagens de “Fora Dilma”, “Fora PT”, como se os
manifestantes tivessem ido à rua apenas para tratar da corrupção de
forma abstrata.
Até pesquisas surgiram para afirmar que as manifestações foram,
principalmente, contra a corrupção, e não contra o governo. Como se
esses elementos não estivessem entrelaçados e pudessem ser servidos em
compartimentos estanques.
Se levarmos mesmo a sério tudo o que dizem, passaremos todo o dia
batendo panelas. Dilma apareceu na versão sandálias da humildade. O tom
era o mesmo. A mesma arrogância: nossa política econômica foi correta,
posso ter errado na dose, cometi um pecadinho com o financiamento
estudantil. Só faltou dizer: muito apressada, esqueci de fechar a
torneira do banheiro por um minuto. É muito difícil sair de uma crise
quando não se leva em conta a realidade. É impossível a esquerda manter
sua base com um ajuste econômico rigoroso. É impossível conquistar os
adversários com ajuste econômico porque seu tema também é a corrupção.
Correndo por fora de toda a cena de reforma política, a prisão de Renato
Duque joga o foco na participação do PT. O tesoureiro João Vaccari já
foi indiciado. Promotores demonstraram com cruzamento de datas propinas e
doações. E revelaram o mecanismo de lavagem de dinheiro através das
contas de campanha.
Renato Duque e João Vaccari negam tudo, disciplinadamente protegem o
partido. Mas até quando? Independente do que falem ou deixem de falar,
os dados recolhidos até agora indicam que dinheiro do petrolão circulou
pelas campanhas de Dilma. Tudo isso trará mais tensão à atmosfera
política. O problema é que precisamos de algum tipo de ajuste econômico
para não cair mais no buraco.
É um momento em que certas espertezas não podem turvar mais o quadro
nebuloso. O presidente da Câmara é investigado no petrolão. O presidente
do Senado também, assim como dezenas de parlamentares. Como dizer então
que a corrupção está apenas no governo?
O que se pode dizer é que ela está principalmente no governo, que detém,
em última análise, o controle da estatal saqueada. O PMDB percebeu o
momento do PT e procura ocupar o centro da cena. É uma ilusão achar que
uma simples mudança na configuração da aliança possa alterar a crise de
legitimidade.
Fernando Henrique e Marina afirmam que o impeachment não é a saída. Mas
sua reação revela como a crise é profunda; em termos normais, líderes
apontam caminhos; no momento, limitam-se a dizer por onde não se deve
ir. Apontar ou rejeitar saídas a médio prazo é quase impossível. Mas há
algumas variáveis que podem definir seu curso. A primeira delas é a
reação da própria Dilma à sua improvável capacidade de autocrítica e
energia para recolocar o governo de pé.
A segunda variável é a do ajuste fiscal, que depende, na verdade, mais
do governo do que do próprio Congresso. É quase unânime a ideia de que o
ajuste fiscal é uma condição para o crescimento. Mas afirmar que basta
para a retomada divide opiniões.
A terceira variável é o curso da Operação Lava-Jato. O que predomina até
agora é a negação, apesar de tantas evidências apresentadas pelos
promotores. No mensalão, Dilma refugiou-se na condição de presidente
para escapar do assunto. Tudo o que aconteceu na Petrobras diz respeito
ao seu governo, muitas das propinas podem ter irrigado suas campanhas
presidenciais. Nesse caso não cabe nenhum tipo de reinvenção, exceto
dizer adeus.
“Que país é esse?” na música da Legião Urbana tem um tom de crítica e
desencanto. Outro país pode surgir se tudo for investigado e a sociedade
obtiver mudanças imediatas. Quem sabe a energia na mudança política
seja o componente que falta para um ajuste econômico necessário?
EXTRAIDADOBLOGROTA2014
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