Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 3 de novembro de 2015

CRÔNICAS DO SÍNODO – UMA QUESTÃO DE MÉTODO

por Hermes Rodrigues Nery

“O mandato vem de Cristo, as incumbências e os deveres vêm de Cristo, as chaves foram entregues por Cristo e não pelo povo. Aí está o engano, o perigo, a ilusão da chamada ‘descentralização’. O caminho da Igreja começa por escutar a Cristo e não o povo. A missão de Pedro vem de Cristo e não do povo. Cristo é o que está ‘elevado, acima de todos’, pois ‘nada podereis fazer sem Mim’”.
De volta a Roma, ainda uma semana antes de encerrar o Sínodo da Família, o clima constatado era de apreensão, especialmente entre os bispos e cardeais, que se empenharam na defesa da sã doutrina sobre matrimônio e família, conforme o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, coerentemente defendido pelo Magistério da Igreja, ao longo dos séculos. Tendo estado com D. Robert Sarah, um dos signatários da carta ao papa Francisco, sabíamos da necessidade de mais vozes se somarem em favor da sã doutrina católica. Por mais que muitos dissessem que a doutrina não será alterada, a preocupação era patente após o pronunciamento de Francisco, na Sala Paulo VI, no sábado, 17 de outubro, quando explicitou categoricamente sua disposição por uma “conversão do papado”, dizendo sentir a necessidade da “descentralização”.
Caminhando com um prelado pelas colunas da Praça de São Pedro, à noite, vimos a Basílica toda iluminada, cuja majestade encanta os olhos, especialmente com as fontes também acesas, com águas em profusão. Ao longe, avistamos a loggia de onde Francisco apareceu pela primeira vez ao mundo, em 13 de março de 2013, curvando-se ao povo, naquele gesto inusitado e impactante, indicando logo naquele início todo o propósito do seu pontificado. “Começamos aqui um novo caminho”, proferiu à multidão de fiéis na Praça, naquela noite fria e chuvosa.
“Não se trata de alterar a doutrina” – explicou-me o prelado, enquanto avistava o Palácio Apostólico desocupado, lembrando-me ainda antes que nem Bento XVI nem Francisco ocupam os aposentos papais, pois o primeiro está recluso no Matter Eclesia, o segundo, ativíssimo na Casa de Santa Marta, junto aos demais bispos e cardeais.
“Eles não teriam como alterar a doutrina”, repetiu, voltando-se em direção ao outro lado, à Porta de S. Ufficio, pela entrada de acesso à Congregação para a Doutrina da Fé. E continuou em sua análise, enquanto seguimos pela Via della Conciliazione.
“Mas poderão recorrer à retórica, às sutilezas semânticas e subterfúgios sofisticados para dubiedades e ambigüidades que permitam afrouxar as exigências da fé, e então o rebanho poderá ficar confuso, especialmente se os conteúdos da fé forem diluídos pelo relativismo. Não irão alterar a doutrina, estamos todos certos disso, mas os problemas começam quando os pastores passam a dizer meias-verdades, a minimizar os efeitos do pecado, a olhar demais somente para a humanidade, deixando de lado a dimensão soteriológica.”
Da Via della Conciliazione era possível ver, ao longe, o castelo de Santo Angelo, com a imagem de São Miguel Arcanjo, no cume da histórica edificação.
“Eles não teriam como fazer isso, ao menos como muitos querem, há décadas. Então, se utilizam de artifícios e estratégias, muito bem calculadas, como num jogo político. Enquanto muitos dizem que não irão alterar a doutrina, abrem brechas para flexibilizações e permissividades, muitas delas justificando aceitar o que era até então inimaginável. ‘Mas os tempos mudaram, as coisas evoluem, e a Igreja não é museu’, repetem com empolgação. Antes, o relativismo não tinha como avançar, quando o sim era sim, e o não era não, com inteira clareza. Agora, os tempos são outros, mais leves, com ‘o espírito e o método’ de um Igreja mais horizontal e igualitária.”
Passamos pela embaixada do Brasil, onde paramos e de onde podíamos ainda avistar a Basílica de São Pedro, ao fundo, iluminada.
E prosseguiu o prelado com as suas considerações:
“O que se teme não é isso, mas a abordagem e a metodologia utilizada, recorrendo também à retórica e ao eufemismo para que muitos desinformados não se dêem conta das brechas que poderão abrir com a estratégia usada. Trata-se de uma questão de método, de um método revolucionário. E Bergoglio confirmou, em sua fala, estar mesmo disposto a fazer tal revolução”.

Lembrei-me do que Elizabetta Piqué conta o que disseram dele: “além de pastor, é um homem de mando, muito capaz, tecnicamente, um animal político”. E mais: “os dois aspectos fortes da sua personalidade são, por um lado, sua proximidade, seu interesse pelos outros, e, ao mesmo tempo, é um homem de condução, de mando. Isso percebe-se mesmo na sua relação com o clero”. Aos sacerdotes de Buenos Aires, Piqué ressalta o que diz Poirier sobre Bergoglio: ele “sempre deixava bem claro quem mandava”, mencionando ainda o que disse José Ignácio Lopez: “além de despojado e de vida espiritual, o cardeal é um homem do poder, que sabia onde colocar suas fichas”.
As fichas agora foram colocadas em seu desejo de “descentralização”, que havia sido acenado na exortação apostólica Evangelii Gaudium, mas afirmado com veemência no pronunciamento de 17 de outubro, como que determinando o tom e a saída política que parece pretender oferecer aos impasses que não pôde resolver durante os dois Sínodos (tanto do ano passado, quanto deste ano). Então, a solução seria mesmo política, bem ao gosto do estilo descrito por Piqué, delegando tão graves decisões, num primeiro nível, às igrejas particulares e, num segundo nível, de modo especial, às conferências episcopais.
Ainda próximo de mais algumas Pontifícias Academias, que ficam quase ao início da Via della Conciliazione, prosseguimos na reflexão:
“É isso que tememos” – completou o prelado – “pois sabemos que muitos organismos das igrejas particulares estão aparelhados, muitos deles ideologizados e serão instrumentalizados para favorecer o relativismo. Com isso, a doutrina corre o risco de ser interpretada ao gosto da base, na conveniência dos interesses locais, sem que Roma possa intervir para salvaguardar os desvios.” E continuou: “Isso, de uma certa forma, já ocorre, em muitos casos e em muitas regiões, mas não com o beneplácito explícito de quem deve ser o primeiro e principal guardião da fé. Isso realmente preocupa”.
Tendo chegado ao início da Via della Conciliazone, quase à esquina da Via S. Pio X, entrando no lungotevere, com vista do rio Tibre, continuamos a conversar.
Lembrei a ele que no Brasil, por exemplo, isso já ocorre, tendo em vista que muitos conselhos paroquiais e diocesanos estão aparelhados ideologicamente, tendentes às muitas expressões da Teologia da Libertação, com padres que apoiam descaradamente partidos políticos abortistas, etc., e, de fato, por estarem aparelhados muitos desses conselhos, a fé ideologizada passa a desconsiderar muitos aspectos essenciais da sã doutrina.
“É preciso reconhecer que há um grave equívoco nesta questão de método, pois trata-se de um método revolucionário, que se volta contra a sã doutrina, contra a identidade católica, contra a própria instituição do papado, diluída e totalmente enfraquecida e, portanto, destituída de suas prerrogativas no cumprimento da sua missão na defesa da Igreja. A descentralização atinge em cheio as prerrogativas do ministério petrino, que foram dadas pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo [Tú és Pedro…] , pois é o mandato que vem de Cristo, as incumbências e os deveres vêm de Cristo, as chaves foram entregues por Cristo e não pelo povo. Aí está o engano, o perigo, a ilusão da chamada ‘descentralização’. O caminho da Igreja começa por escutar a Cristo e não o povo. A missão de Pedro vem de Cristo e não do povo. Cristo é o que está ‘elevado, acima de todos’, pois ‘nada podereis fazer sem Mim’, Ele dissera, como ainda sabemos por Ele, que os ramos que não estiverem enxertados na Videira não produzirão bons frutos”.
Na questão de método, na lógica das sutilezas semânticas e da retórica, um “mas” torna-se bem perigoso, no desvio do que se diz inicialmente, a exemplo do que foi afirmado no pronunciamento de 17 de outubro, quando se disse que “Jesus constituiu a Igreja, colocando no seu vértice o Colégio Apostólico, no qual o apóstolo Pedro é a ‘rocha’ (cf. Mt 16, 18), aquele que deve ‘confirmar’ os irmãos na fé (cf. Lc 22, 32). Mas nesta Igreja, como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se abaixo da base.” O prelado chamou-me a atenção sobre isso, de que aqui havia o problema, a lógica da “pirâmide invertida” que coloca a instituição do papado “abaixo da base”, em que “só na medida em que estes organismos permanecerem ligados a ‘baixo’ e partirem do povo, dos problemas do dia-a-dia, é que pode começar a tomar forma uma Igreja sinodal”.
“É o próprio Rousseau que ressoa naquele discurso – continuou observando – e sabemos no que deu Rousseau.” E acrescentou: “Mais enfático Francisco não poderia ter sido quando afirmou: ‘não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’”. Agora, é aguardar a exortação pós-sinodal, pois esta é a hora em que Francisco poderá usar sua força de mando para impor a todos o que quer, o programa que deseja desde o primeiro instante, quando propôs a todos um caminho novo, na loggia da Basílica, ao lado de Cláudio Hummes e Godfried Daneels.
“Com a descentralização, estará desferindo assim um duro golpe à instituição do papado, com consequências bastante imprevisíveis. É isso o que tememos, pois não sabemos até que ponto ele está ou não disposto, e em que proporções. Ele próprio disse sentir a necessidade disso. Portanto, agora é aguardar e rezar”.
  







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