por Paulo Vasconcelos Jacobina
(ZENIT.org)
Nunca houve, na história do Brasil, um instrumento potencialmente tão completo, em termos de dominação ideológica do país, como o ENEM. De fato, ele é, hoje, basicamente a única porta de acesso a todo o ensino superior e a toda a estrutura de pós-graduação no país – vale dizer, quem não estiver preparado para demonstrar não somente qualidade acadêmica, mas também afinação com os pressupostos ideológicos que regem os elaboradores e corretores do exame está condenado a não obter vaga nas universidades, ou ao menos privar-se das universidades de maior qualidade e dos cursos mais procurados.
Não se trata de discutir se o ENEM é ou não um instrumento pedagógico tecnicamente bom. Possivelmente ele é, e isto não diz nada em seu favor: são exatamente os instrumentos bons os que são mais aptos de produzir danos enormes quando mal utilizados. Uma faca extremamente afiada é um instrumento soberbo para um bom churrasco, mas é também uma arma letal nas mãos de um assassino. Há uma confusão básica – também no campo da educação – entre ética e técnica, como se o avanço técnico da ciência pudesse influir diretamente, ou mesmo determinar, as fronteiras da ética.
Neste ponto, há que se frisar: nenhum governo autoritário do Brasil jamais dispôs de um instrumento tão completo, abrangente e eficaz, no plano do controle ideológico, como é o ENEM. Para o bem ou para o mal. Trata-se, como disse, de condicionar o acesso a todo o ensino superior à porta única de entrada que é este exame. E que, é claro, submete-se (potencialmente ao menos, senão em ato) a um grande controle ideológico sob o ângulo de certos consensos acadêmicos e midiáticos que estão bem estabelecidos, hoje, no nosso país e no mundo.
Dou um exemplo: há uma grande discussão, hoje, sobre a verdadeira noção de “identidade sexual”. Tradicionalmente, sempre se entendeu que a “identidade sexual” do ser humano é binária: somos homens e mulheres, e as exceções clínicas, raríssimas, somente confirmavam a regra. Há, é claro, (e tradicionalmente se entendia assim) o campo das tendências, inclinações, desejos e opções sexuais, mas estes não faziam parte da própria identidade sexual, da substância da pessoa humana, senão do campo dos condicionamentos e das escolhas,
das opções e vivências culturais e pessoais, na riqueza da sexualidade humana. Compreendia-se que havia homens e mulheres, e que havia diversas maneiras e modos de se viver na prática a sexualidade, sem que tais maneiras e modos passassem a integrar a própria noção de identidade sexual. É assim que a Declaração Universal de Direitos Humanos, já nos seus “consideranda”, fala em “dignidade e valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres”, ou em vedação de “distinção de sexo”, já no seu artigo 2º. É assim, também, que no seu art. 16, reconhece-se que “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”. Para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto, a questão de uma “identidade sexual” diversa do sexo das pessoas nem sequer se colocava. Éramos, e sempre fomos, homens e mulheres. Ponto. Todo o resto estava no campo dos condicionamentos, das escolhas, das tendências e desvios, alguns publicamente reprimidos, como a pedofilia, alguns simplesmente tolerados, como a promiscuidade, outros estimulados, em função do seu interesse para todos, como a formação de famílias complementares e fecundas. E as coisas foram assim até pelo menos os anos setenta.
O advento da ideologia do gênero.
De repente, embalados por estudos pretensamente científicos e suas interpretações filosóficas ou pseudoéticas, de pensadores como Wilhelm Reich, Marcuse, Simone de Beauvoir, Foucault, Shulamith Firestone ou Judith Butler, só para citar alguns, a “identidade sexual” passou a incorporar em si não somente a condição de homens e mulheres, mas as próprias tendências, escolhas, condicionamentos ou desvios, fazendo com que o lado estritamente subjetivo da sexualidade humana prevalecesse sobre a objetividade da convivência pública, e inserindo no campo da dignidade da pessoa humana a ser tutelada pelo Estado aquilo que, anteriormente, estava no âmbito da estrita variabilidade pessoal, com todo o grau de conforto ou desconforto que as situações concretas determinavam.
Assim, ser, digamos, somente para exemplificar, um pedófilo, um estuprador, um heterossexual promíscuo, ou mutilar-se física e hormonalmente com o fito de simular um sexo biológico diverso daquele que sua pessoa recebeu pelo nascimento, dentre outras tendências sexuais possíveis, tudo isto transportou-se de onde estava originalmente (do plano das tendências, dos condicionamentos e das escolhas comportamentais) para o campo da própria identidade sexual substancial da pessoa humana, a ser pretensamente tutelada pela legislação que protege a dignidade da pessoa humana. E sob as penas de criminalizar-se como homofóbico o pensamento de quem insiste na concepção histórica e consentânea com a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de que a identidade sexual, quanto à substância da pessoa humana, diz respeito apenas à condição de sermos homens e mulheres. Tudo o mais tem, é certo, reflexos importantes na tutela da pessoa humana, mas não definiria, conforme sempre se pensou até a instalação hegemônica do pensamento contrário no âmbito de um certo “consenso acadêmico” e “jurídico”, identidade substancial de ninguém.
Quais as consequências sociais dessa ideologia.
As consequências práticas estão aí, e tornam impossível adotar a postura do “viva e deixe viver” que a maior parte dos pais, educadores, operadores e mesmo pessoas religiosas estão adotando. Não se trata de dizer: “ora, se você não concorda com isso, viva a sua vida e deixe que os outros vivam, afinal esta é uma sociedade democrática e plural”. Não é tão simples assim: definir que tendências e inclinações sexuais definem a própria identidade sexual para fins de tutela da dignidade da pessoa humana significa dizer, entre outras coisas, que os banheiros públicos já não terão mais, como critério de uso, a fisiologia dos usuários, mas a sua “identidade sexual” definida pela “tendência” ou “inclinação” que ele escolhe ou encontra em si mesmo. Assim, em vez de usar um banheiro público conforme a sua fisiologia, ele o usará conforme a sua “identidade sexual”, num grande quiproquó: o banheiro não será mais espaço de atendimento de necessidades fisiológicas determinadas pela biologia, mas espaço de afirmação de tendências ou inclinações sexuais elevadas ao grau de dignidade da pessoa humana. Não se trata, pois, de construir mais banheiros, digamos, terceiros ou quartos banheiros, para aqueles cuja escolha identitária sexual não coincide com a fisiologia, por nascimento ou por mutilação cirúrgica, mas de compelir a todos, mesmo aqueles que ainda acreditam no texto original da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, a dividir o banheiro não pelo critério da conformação fisiológica, mas da tendência ou inclinação sexual, inclusive e principalmente quando esta não coincidir com a fisiologia. A proposta, portanto, é de reeducação global impositiva estatalmente, inclusive por meios criminais, para tornar hegemônico aquilo que certo consenso acadêmico e jurídico vê como avanço social e civilizatório, tornando impossível sequer manifestar opinião contrária. Que seria, segundo eles, afrontosa aos direitos humanos e à dignidade da pessoa, e portanto, uma opinião que até outro dia fazia parte do próprio texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU passa a ser quase uma opinião bandida.E banida.
Os reflexos práticos das opções estatais nas liberdades públicas.
Imaginemos, agora, uma ação judicial coletiva que vise forçar as escolas confessionais do país inteiro a permitir, ou mesmo a impor, que suas crianças, meninos ou meninas, dividam o banheiro com pessoas adultas cuja “inclinação” ou tendência” não coincida com a respectiva fisiologia. Isto simplesmente inviabilizaria, no limite, a própria existência de espaços confessionais abertos ao público, remetendo a religiosidade humana exatamente para onde estes mesmos ideólogos sempre propuseram que ela deveria estar: no âmbito do estritamente privado e fechado. E onde estamos? Basicamente calados.
Ora, o que se vê, mesmo, digamos, em certos âmbitos educacionais e confessionais, não é simplesmente uma preparação para conviver – e formar nossos filhos para conviver – com uma sociedade majoritariamente adversa. Trata-se de estar muitas vezes cegos para o que parece ser um discurso de “direitos humanos” e “militância” social, ou mesmo empolgados com tais perspectivas, promovendo-as até mesmo como deveres para um cristão, jovem ou idoso. E vemos educadores católicos, padres, bispos e entidades religiosas promovendo, orgulhosos, encontros, debates e passeatas para promover a defesa destas posições como se fossem a defesa de “oprimidos e marginalizados”, numa postura pouco coerente. Mas parece que ainda vivemos uma época, mesmo em certos âmbitos religiosos institucionais, em que palavras de ordem valem mais do que a Bíblia e o Catecismo. Não há nada mais importante do que ter critérios. E é exatamente de critérios que estamos nos tornando paupérrimos.
Voltemos então para o ENEM. Não é de estranhar que Simone de Beauvoir tenha sido tema no último exame. Nem quero imaginar o que ocorreria com os estudantes que ousassem lê-la, na prova, de maneira diversa dos tais “consensos acadêmicos”. Muito poucos, é certo, conseguiriam, porque já foram devidamente doutrinados para fazer o exame, e nem sequer sabem que há a possibilidade de uma leitura diversa daquela que o Exame espera deles. Mas e quanto aos que pensam diversamente? Dobram-se à ideologia vigente ou estão fora do mundo do ensino superior de qualidade. É uma arma poderosa.
EXTRAÍDADEPUGGINA.ORG
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