Demétrio Magnoli:
Eu sabia que eles assinariam um manifesto.
Ingênuo, imaginei que, desta vez, seria um texto contra o pacote fiscal
de Dilma Rousseff (culpando, bem entendido, o mordomo, que se chama
Joaquim).
Contudo, eles desistiram de fingir: o
inevitável manifesto, intitulado “O que está em jogo agora”, é tão
oficialista como “A voz do Brasil” dos velhos tempos. Num lance vulgar
de prestidigitação, o texto dos “intelectuais de esquerda”, assinado por
figuras como Marilena Chaui, Celso Amorim, Emir Sader, Fabio Comparato,
Leonardo Boff, Maria da Conceição Tavares e Samuel Pinheiro Guimarães,
apresenta-se como uma defesa da Petrobras — mas, de fato, é outra coisa.
O ofício intelectual não combina bem com
manifestos. Dos intelectuais, espera-se o pensamento criativo, a crítica
do consenso, a dissonância — não o chavão, a palavra de ordem ou o
grito coletivo. Por isso, eles deveriam produzir manifestos apenas em
circunstâncias excepcionais.
Os “intelectuais de esquerda”, porém, cultivam
o estranho hábito de assinar manifestos. Vale tudo: crismar um crítico
literário como inimigo da humanidade, condenar a palavra equivocada no
editorial de um jornal, tomar o partido de algum ditador antiamericano,
denunciar a opinião desviante de um parlamentar. O manifesto sobre a
Petrobras é parte da série — mas, num sentido preciso, distingue-se
negativamente dos demais.
A fabricação em série de manifestos é um
negócio inscrito na lógica do marketing. De fato, pouco importa a
substância do texto, desde que ele ganhe suficiente publicidade,
promovendo a circulação do nome dos signatários.
Como os demais, o manifesto da Petrobras é uma
iniciativa em proveito próprio. Mas, nesse caso, o proveito tem dupla
face: além do marketing da marca, busca-se ocultar o fracasso de uma
ideologia. Por isso — e só por isso! — ele merece a crítica de quem não
quer contribuir, involuntariamente, com a operação mercantil dos
“intelectuais de esquerda”.
Segundo o manifesto, a Operação Lava-Jato
desencadeou uma campanha da mídia malvada para entregar a Petrobras,
junto com nosso petróleo verde-amarelo, aos ambiciosos imperialistas.
A meta imediata da conspiração dos agentes
estrangeiros infiltrados seria restabelecer o regime de concessão. Sua
meta final seria remeter-nos “uma vez mais a uma condição subalterna e
colonial”. A fábula, dirigida a mentes infantis, esbarra numa
dificuldade óbvia: sem o aval do governo, é impossível alterar o regime
de partilha.
A Petrobras não foi derrubada à lona pelo
escândalo revelado por meio da Lava-Jato, que apenas acelerou o nocaute.
Os golpes decisivos foram assestados ao longo de anos, pela política
conduzida nos governos lulopetistas, sob os aplausos extasiados dos
“intelectuais de esquerda”.
No desesperador cenário atual, a direção da
Petrobras anuncia uma redução brutal de investimentos na prospecção e
extração, precisamente os setores em que a estatal opera com eficiência.
O regime de partilha obriga a empresa a investir em todos os campos do
pré-sal.
A troca pelo regime de concessão será,
provavelmente, a saída adotada pelo governo Dilma. Os “intelectuais de
esquerda”, móveis e utensílios do Planalto, escreveram o manifesto para,
preventivamente, atribuir a mudança de rumo aos “conspiradores da
mídia”. Por meio dessa trapaça, conciliam a fidelidade ao “governo
popular” com seus discursos ideológicos anacrônicos. Ficam com o
pirulito e a roupa limpa.
Há uma diferença de escala, de zeros à
direita, entre as perdas decorrentes da corrupção e as geradas pelo
neonacionalismo reacionário. A Petrobras é vítima, antes de tudo, do
investimento excessivo movido a dívida, da diversificação ineficiente e
do controle de preços de combustíveis.
Numa vida inteira de falcatruas, Paulo Roberto
Costa, o “Paulinho”, e Renato Duque, o “My Way”, seriam incapazes de
causar danos remotamente comparáveis aos provocados pelos devaneios
ideológicos do lulopetismo — que são os dos signatários do manifesto.
“A História dirá!”: os “intelectuais de
esquerda” invocam, ritualmente, o veredito de um futuro sempre adiável. O
manifesto é uma manobra diversionista. Ele existe para desviar a
atenção pública de um singelo, mas preciso, veredito histórico: a
falência da Petrobras é obra de uma visão de mundo.
Franklin Martins, o verdadeiro autor do
manifesto, cometeu um erro tático ao colocar seu nome entre os
signatários. Ao fazê-lo, o ex-ministro descerra o diáfano véu de
independência que cobriria a nudez do texto. O manifesto não é a “voz da
sociedade”, nem mesmo de uma parte dela, mas a Voz do Brasil.
Nasceu no Instituto Lula, como elemento de uma
operação de limitação dos efeitos da Lava Jato. Enquanto os
“intelectuais de esquerda” assinavam uma folha de papel, Lula reunia-se
com representantes do cartel das empreiteiras e Dilma preparava o
“acordo de leniência” destinado a restaurar os laços de solidariedade
entre as empresas e os políticos.
Sem surpresa, no último parágrafo, o manifesto
menciona o ano mágico. A conspiração “antinacional” e “antidemocrática”
dos inimigos da Petrobras almejaria provocar uma “comoção nacional” e,
finalmente, a “repetição” do golpe militar de 1964.
Na Venezuela, que deixou de ser uma
democracia, o regime aprisiona líderes opositores sob acusações
fantasiosas de conspiração golpista. No Brasil, que é uma democracia,
acusações similares partem dos “intelectuais de esquerda”.
Os signatários do manifesto, sempre encantados
por regimes nos quais a divergência política equivale à traição da
pátria, sonham com o dia em que falariam sozinhos, como porta-vozes de
um poder incontestável.
O manifesto é uma peça de corrupção
intelectual. Ele contamina a praça do debate público com os resíduos de
um discurso farsesco. A Petrobras é um pretexto. Os “intelectuais de
esquerda” enrolam-se no pendão auriverde para fingir que não estão
pelados.
MATERIAEXTRAIDADOBLOGDEAUGUSTONUNES
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