Demétrio Magnoli O GLOBO
De Geisel a Lula, o Brasil descreveu um longo círculo de reiteração do patrimonialismo
Os jornais separam economia e política em seções distintas. A norma
reflete o princípio fundamental da economia de mercado, que traça uma
fronteira entre a esfera (pública) do sistema político e a esfera
(privada) do sistema econômico. No Brasil, como evidencia uma entrevista
do presidente da Braskem publicada no “Estadão” (9/2),
a distinção mais confunde que esclarece: o texto está no caderno de
Economia, mas é um curso modular sobre a crise política em
desenvolvimento.
Módulo 1: capitalismo de estado. A Braskem, maior petroquímica
brasileira, tem o estatuto jurídico de empresa privada. Contudo, o
segundo maior acionista da empresa é a estatal Petrobras (36%), atrás
apenas da controladora, a Odebrecht (38%), cujos negócios dependem
fortemente da estatal petrolífera. A teia acionária tem um significado: a
indústria de base no Brasil oscila ao sabor de decisões políticas
adotadas no Planalto.
Módulo 2: trajetórias do capitalismo de estado. A Odebrecht
consolidou-se no Nordeste em 1961, beneficiando-se de vastos subsídios
da Sudene, e converteu-se em grande empresa nacional no início da década
de 1970, em virtude das relações privilegiadas entre Norberto Odebrecht
e o general Ernesto Geisel, então presidente da Petrobras. Um símbolo
da aliança foi a construção do edifício-sede da estatal, inaugurado em
1974, ano da ascensão de Geisel ao Planalto.
Módulo 3: modernização do capitalismo de estado. A Odebrecht começou a
investir na petroquímica em 1970, mas expandiu seus negócios no setor
com o programa de privatizações de FHC e os integrou na Braskem em 2002,
ano da eleição presidencial de Lula. Sob o neonacionalismo lulopetista,
em 2008, a Petrobras ampliou de 8,1% para 30% sua participação
acionária na Braskem, possibilitando a aquisição do Grupo Ipiranga.
Módulo 4: Lula e o capitalismo de estado. A explosão de investimentos do
conglomerado petroquímico foi financiado por bilionárias linhas de
crédito do BNDES e pela crescente participação acionária do BNDESPar.
Entre 2008 e 2013, o BNDES aportou mais de R$ 4,1 bilhões à Braskem.
Emílio Odebrecht Jr. revelou-se um cientista político mais arguto que a
maioria dos professores universitários da área, explicando que “o
presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi de esquerda”. Em
2011, na inauguração do Itaquerão, construído pela empreiteira, saudou a
chegada do ex-presidente com uma sincera exclamação: “Meu chefe!”.
Junto com a OAS e a Camargo Corrêa, a Odebrecht arcou com os custos de
cerca de metade das viagens de Lula ao exterior entre 2011 e 2013.
Módulo 5: capitalismo de monopólio. A Petrobras figura como principal
parceiro comercial da Braskem, fornecendo-lhe seu insumo básico — a
nafta, um derivado do petróleo usado na fabricação de gases e resinas
plásticas. A Petrobras é fornecedora exclusiva de nafta no país, e a
Braskem é compradora exclusiva do produto. Um contrato com prazo de dez
anos, firmado em 2009, regula as condições do fornecimento de nafta. O
cenário duplamente monopolista indica que a petroquímica nacional está
sujeita a um virtual colapso na hipótese de sequências desastrosas de
decisões políticas do Planalto.
Módulo 6: populismo lulopetista. No primeiro mandato, Dilma Rousseff
decidiu utilizar a Petrobras para corrigir as distorções inflacionárias
de sua política econômica, congelando os preços dos combustíveis. A fim
de proteger seu caixa, a estatal passou a usar a nafta produzida em suas
refinarias na composição da gasolina — e começou a importar o insumo
destinado à Braskem. Em 2013, a petroleira anunciou que repassaria à
petroquímica os aumentos de custos ligados à importação da nafta,
alterando os termos do contrato. A iniciativa gerou um impasse entre os
parceiros monopolistas. “Não cabe a nós pagar a conta da política do
combustível do governo”, reclama Carlos Fadigas, presidente da Braskem.
Módulo 7: administração de crise e crise de administração. Diante do
impasse, os parceiros firmaram um aditivo de seis meses, até agosto de
2014, estendendo as condições do contrato vigente, e depois um outro,
que se encerra no fim deste mês, assegurando a entrega do insumo mas
deixando o preço em aberto. Algo inédito, a santa aliança do capitalismo
de estado lava roupa suja em público. Fadigas: “Estou comprando
matéria-prima por um preço que não sei qual é. Temos contratos com preço
estabelecido; então, vendo sem saber a margem. É absurdo.”
Módulo 8: o piloto sumiu. A diretoria da Petrobras foi arrastada pela
avalanche das investigações do escândalo de corrupção. No lugar de
aditivos improvisados, desenhou-se o cenário onírico de um telefone que
ninguém atende. Fadigas, sobre a negociação da nafta: “Está muito
difícil, por causa da situação da própria Petrobras. Mas hoje, não vou
dizer que está difícil porque nem temos um interlocutor na empresa.” Os
investimentos já estão congelados, refletindo a incerteza generalizada
sobre o futuro próximo. O risco imediato, alerta a Braskem, é a
paralisação da maior parte da indústria petroquímica no país devido a
uma possível interrupção no fornecimento da nafta.
Módulo 9: a república dos companheiros. O novo presidente da Petrobras
acabou de assumir o posto e sua prioridade não é a nafta, mas a
fabricação de um balanço auditável.
Fadigas peregrinou a Brasília para solicitar uma intervenção salvadora
do ministro do Desenvolvimento. Paralelamente, desconfio, Emílio
Odebrecht Jr. dispara telefonemas para o “meu chefe!”, que é o chefe de
todos, inclusive dos diretores demitidos e presos da Petrobras. Na
república dos companheiros, os grandes negócios não são feitos na arena
do mercado, mas nos meandros da política subterrânea.
Conclusão do curso: de Geisel a Lula, o Brasil descreveu um longo
círculo de reiteração do patrimonialismo. Agora, contudo, o poder não
dispõe do escudo protetor da ditadura.
FONTE ROTA2014





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