J. R. Guzzo Publicado na revista Exame
As lendas narradas aí, em comparação com os clássicos tão conhecidos por todos, são uma lástima em matéria de qualidade. Saem Orfeu, Jasão ou o Minotauro. Em seu lugar entram um primeiro-ministro descrito como militante da “esquerda radical” e uma manada cinzenta de burocratas europeus, banqueiros que fizeram maus empréstimos, políticos gregos que esperam tirar proveito da nova abordagem anunciada para a calamidade financeira que há anos degenera a vida pública e privada da Grécia.
Em vez de feitos heroicos, as novas lendas propõem reuniões com power point, chatíssimas, intermináveis e provavelmente inconclusivas. Os grandes enigmas da alma humana cedem lugar a rixas miseráveis em torno de calotes na praça. Estranhamente, porém, a mitologia grega versão 2015 consegue ser levada a sério por muita gente. É o que a transforma em piada. Em todo o tumulto mental levantado pela recente chegada dos “radicais de esquerda” ao governo da Grécia, nada é mais cômico do que a extraordinária ideia segundo a qual o mundo está às vésperas de um abalo, talvez mortal, no sistema capitalista.
Como o novo governo grego se propõe a descumprir os acordos de higienização financeira que firmou com as autoridades monetárias internacionais, a partir de 2008, para gerir o abismo em suas contas públicas, a esquerda econômica e seus companheiros de percurso pelo mundo afora passaram a sonhar com a breve chegada de uma crise que mudará de alto abaixo a economia mundial. A morte do capitalismo vem sendo prometida desde 1929, pelo menos, até agora sem resultado algum – hoje, quase 90 anos depois, os fatos mais relevantes na vida econômica real são a reafirmação dos Estados Unidos, mais uma vez, como a turbina mestra do crescimento no planeta Terra, e o inexorável avanço da China como a pátria promotora do capitalismo selvagem.
Mas a militância econômica da esquerda continua a imaginar que um episódio de periferia, como o tumulto grego, possa de repente mudar tudo – quem sabe a coisa vai, desta vez? No Brasil, particularmente, a torcida anti-capital bota fé nos poderes revolucionários que acredita ter descoberto em Atenas. Sonha com a transformação da Grécia numa nova Venezuela, seu grande (e praticamente único) modelo alternativo para o sistema todo que “está aí”. Em seu modo de ver o mundo, um regime econômico cujo principal feito, em dez anos de prática, foi produzir a falta de papel higiênico, está mostrando o caminho a seguir pelos gregos e, depois, pelo resto da humanidade.
Falta combinar com os gregos, é claro, mas quem se importa com esses detalhes? O diabo é que os detalhes, como em geral acontece, são tudo. O novo governo da Grécia quer se livrar de obrigações destinadas a limitar os seus gastos, cuja aplicação tem causa do todo tipo de sofrimentos sociais. Mas, por mais radicalismo que coloque em seus discursos, sabe que o país precisa montar algum tipo de entendimento com a Europa e o mundo que tem em volta se si – e isso não tem nada a ver com a fantasia de eliminar o capitalismo.
Mais ainda, é preciso admitir a realidade de que um país como a Grécia, com população menor que à do Estado do Paraná e peso próximo ao zero na economia global, não tem cacife, simplesmente, para revolucionar o mundo e mudar os regimes dos cerca de 200 países que atualmente lhe fazem companhia na superfície terrestre. Como dito acima, é pura mitologia – e agora sem graça nenhuma.
FONTE AUGUSTONUNESOPINIÃO
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