Sérgio Fausto O ESTADO DE SÃO PAULO
Ante os fatos estarrecedores que surgem na apuração do escândalo da
Petrobrás, o governo empenha-se em tentativas disparatadas de ora borrar
a singular gravidade do esquema de corrupção descoberto, ora atribuir a
si os méritos pelo desenrolar desimpedido dos trabalhos da Polícia e do
Ministério Público Federais, como se isso não se devesse à autonomia
constitucionalmente assegurada a esses órgãos do Estado brasileiro.
Melhor teria feito o governo se não tivesse solenemente ignorado, desde
2009, os alertas do TCU de que havia algo de muito errado acontecendo na
maior empresa brasileira.
O disparate chega a tal ponto que dias atrás o ministro da Justiça se
aventurou em análise sobre a "cultura brasileira" para "explicar" as
causas do petrolão. A culpa seria de todos nós, supostamente tolerantes
com a prática diária de atos de corrupção, como se o assalto continuado
aos cofres da Petrobrás, perpetrado pela associação criminosa de agentes
públicos, atores políticos e um cartel de empresas privadas, fosse
fenômeno equivalente ao pagamento de propina ao guarda da esquina para
evitar uma multa de trânsito. Por mais reprovável que seja este ato, uma
coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, muito mais grave aquela,
por suas repercussões gerais, do que esta. Trata-se de uma obviedade
que não deveria escapar a um homem esclarecido e normalmente sensato
como José Eduardo Cardozo. É que mesmo as mais lúcidas cabeças do
governo andam confusas nos dias que correm.
O rei está nu. No caso, a nudez decorre da revelação de um padrão de
desvio de recursos públicos que é novo não apenas por sua escala, mas
também porque é parte integrante de um fenômeno político inédito no
Brasil: a formação de um bloco de poder articulado por um partido com
máquina política e sindical, que mobiliza os instrumentos de um Estado
em expansão desregrada para cooptar setores do empresariado e da
sociedade e assim tornar viável seu projeto de hegemonia política
duradoura. A captura de empresas estatais, agências reguladoras, bancos
públicos e fundos de pensão é uma operação constitutiva desse modelo e
de sua perpetuação (não um acidente de percurso). Nele há uma peculiar
acoplagem dos interesses políticos dominantes à ideologia de que cabe ao
Estado o papel de líder e motor do desenvolvimento. Os ideólogos de
boa-fé, imbuídos do propósito de fazer a grandeza do Estado e da Nação,
não raro confundidos como uma só e mesma coisa, preparam
inadvertidamente o terreno ideológico e operacional, quando têm poder
para tanto, em que vicejam esquemas de corrupção nos moldes do petrolão.
Com a bonança econômica dos anos Lula, propiciada em boa parte por
condições externas muito favoráveis, com a oposição enfraquecida social e
politicamente, o modelo rodou a mil por hora. Havia condições
financeiras e políticas para contemplar todos os apetites, os legítimos e
os ilegítimos. Como costuma acontecer em momentos de euforia, os
operadores do modelo - e, por favor, não confundamos os "de boa-fé" com
os "de má-fé" - perderam a noção dos riscos econômicos e/ou criminais em
que incorriam. Os "de má-fé" experimentaram até recentemente a sensação
de impunidade que só o poder aparentemente irrefreável é capaz de
oferecer.
O petrolão não pode ser analisado como um ato isolado. Ele é o sintoma
mais grave de uma doença que se instalou nos fundos de pensão, nos quais
o PT passou a controlar a representação governamental e dos empregados,
quando antes havia equilíbrio de forças; nas agências reguladoras, em
que a nomeação por critérios técnicos foi substituída pela ocupação
partidária; nos bancos públicos, cujas diretorias se abriram aos
partidos, a ponto de o tesoureiro de um deles ter sido recentemente
nomeado para uma das vice-presidências da Caixa Econômica Federal - para
ficar apenas em algumas referências.
Dizer que já havia corrupção nas relações entre agentes públicos, atores
políticos e empresas privadas antes de o PT chegar ao poder é afirmar o
óbvio. Nessa matéria nenhum partido é puro, nem aqui nem em nenhuma
parte do mundo. Não se trata, portanto, de apontar mocinhos e bandidos,
mas de verificar em que medida essas relações vão ganhando forma de
organização criminosa e penetrando as estruturas do Estado e do sistema
político. No limite, dá-se a constituição de um poder paralelo e oculto
que comanda o jogo político e empresarial, sob a carapaça da legalidade
formal do Estado democrático. É o que aconteceu na Itália, onde até o
venerando Giulio Andreotti, diversas vezes primeiro-ministro, se tornou
parte integrante da rede mafiosa desbaratada pela Operação Mãos Limpas,
no início dos anos 1990.
É desse risco que o Brasil possivelmente se está livrando com a operação
Lava Jato, se ela produzir os efeitos desejados na esfera penal. A
corrupção que ganhou forma nos últimos 12 anos não é moralmente mais
condenável do que a que a precedeu. Mas é politicamente mais perigosa,
pela imbricação sistemática de partidos, instituições do Estado e
cartéis de empresas de grande porte, num esforço coordenado para desviar
recursos públicos com o fim último de perpetuar no poder o mesmo
sistema que engendrou ou permitiu a ação criminosa organizada. Não é que
exista um gênio do mal por trás de tudo isso. O que temos é uma lógica
de poder que, se não for quebrada, produzirá um mostro que possivelmente
fugirá ao controle mesmo dos que se imaginavam capazes de controlá-lo.
Claro que reformar o sistema político é imprescindível para reduzir as
chances de novos petrolões e fortalecer a democracia. Para isso, no
entanto, nada é mais importante agora do que traçar com nitidez a
divisória que separa a legalidade democrática da atividade criminosa,
punindo exemplarmente os que cruzaram essa fronteira, não importa a cor
partidária que tenham ou os interesses que representem.
FONTE ROTA2014
0 comments:
Postar um comentário