Jornalista Andrade Junior

sábado, 27 de dezembro de 2014

"Anistia, paz social",

  por Marco Aurélio Mello

Folha de São Paulo



A história, com os acontecimentos e circunstâncias vivenciados, conduz à reflexão, à formação de ideias, à prática de atos na vida em sociedade. É comum dizer que o passado serve de alerta, de luz, visando à correção de rumos, ao fortalecimento da unidade nacional.
Conhecer os erros, os equívocos, os procedimentos conflitantes com a postura que se aguarda do homem médio com a ordem jurídica, com o direito posto, é da maior valia para que não se repitam, norteando a arte de atuar das gerações.
Em 1979, os olhos da nação direcionaram-se ao restabelecimento da paz social. O momento era de abandono de toda sorte de paixão extremada, de busca da abertura sociopolítica, do entendimento, consideradas as diversas correntes ideológicas.
A mudança de contexto, pouco importando o enquadramento que se dê hoje, veio a ser viabilizada, surgindo uma lei aprovada pelos representantes do povo. Acionou-se o que se pode denominar como justiça de transição. A anistia retratou, de forma linear, bilateral, os sentimentos reinantes. Bendita Lei da Anistia, cuja eficácia constitucional foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal.
Alterar esse quadro por meio de revisão judicial, revisitando-se o conteúdo, a extensão da anistia, implica desprezo à escolha legislativa, à segurança jurídica, renegando-se o avanço cultural alcançado. O Brasil pode e deve aprender com o passado, mas há de ter os olhos no presente, planejando o futuro.
Entre punições de toda ordem e reconciliação, a opção recaiu sobre a segunda, que se revelou certa e eficiente à pacificação. Perdão em sentido maior, reconstrução da democracia e afirmação do Estado de Direito foram escolhas associadas à época. O abandono desse enfoque gera preocupação.
O pronunciamento do Supremo, em 2010, a partir do voto sábio do ministro Eros Grau, calcado em insuplantável equidistância, homenageou o que decidido em termos de normatividade, afastando de vez surpresas, sobressaltos, de consequências imprevisíveis e indesejáveis. Incluamo-nos, sim, entre os que se embalam pelo idealismo e dele retiram a força para construir uma realidade transformadora.
Mais e mais indignados com os acontecimentos que assolam a nação, devemos manter o desejo de testemunhar o dia em que se terão abolido obtusas mentalidades e viciadas práticas, que deságuam na perniciosa junção do privado e do público, usando-se o segundo como meio de fazer crescer o primeiro, quando deveria ocorrer justamente o contrário: cada um dar o melhor de si em proveito da sociedade, jamais pretendendo beneficiar-se, privativa e ilicitamente, da coisa pública, dos bens que a todos pertencem.
Continuemos a almejar um Brasil livre da corrupção, dos desmandos, do uso desregrado da máquina administrativa.
Essa visão não é utópica. É possível e viável. Para tanto, mostra-se suficiente que ao menos a maioria esteja decidida a seguir o caminho por vezes mais difícil e tortuoso, evitando os atalhos falaciosos que conduzem ao abismo da imoralidade, ilegalidade e abuso de poder. Já passou, e muito, da hora de dar um basta aos escândalos, aos roubos, aos desvios de dinheiro, ao aparelhamento do Estado, ao desgoverno.
Nossa tão rica nação é hoje mal vista no exterior, sendo objeto de investigação por entidades internacionais, desmoralizada naquilo que deveria ser nosso orgulho e pelo qual se deveria zelar: a ética, sinônimo da arte de bem proceder na vida social.
Cabe o grito de protesto pela desfaçatez com que se rouba às instituições nacionais, o inconformismo com a apatia demonstrada por quem tem a obrigação de coibir procedimentos infames e, às vezes, acaba seduzido pela vantagem política, pelo lucro fácil advindo de dinheiro sujo. Clamemos por mudanças profundas na mentalidade dos detentores do poder.
Tantas decepções não podem minar o otimismo. Reafirmemos a profissão de fé nas virtudes dos brasileiros, no brio de homens e mulheres que ousarão levantar-se contra o torpor em que está mergulhado o país, arregaçando as mangas e cobrando as transformações necessárias. Entre passado, presente e futuro, a escolha é única, visando dias melhores nesta sofrida República.
MARCO AURÉLIO MELLO, 68, é ministro do Supremo Tribunal Federal
FONTE ROTA2014

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