por Marco Aurélio Mello
A história, com os acontecimentos e circunstâncias vivenciados, conduz à
reflexão, à formação de ideias, à prática de atos na vida em sociedade.
É comum dizer que o passado serve de alerta, de luz, visando à correção
de rumos, ao fortalecimento da unidade nacional.
Conhecer os erros, os equívocos, os procedimentos conflitantes com a
postura que se aguarda do homem médio com a ordem jurídica, com o
direito posto, é da maior valia para que não se repitam, norteando a
arte de atuar das gerações.
Em 1979, os olhos da nação direcionaram-se ao restabelecimento da paz
social. O momento era de abandono de toda sorte de paixão extremada, de
busca da abertura sociopolítica, do entendimento, consideradas as
diversas correntes ideológicas.
A mudança de contexto, pouco importando o enquadramento que se dê hoje,
veio a ser viabilizada, surgindo uma lei aprovada pelos representantes
do povo. Acionou-se o que se pode denominar como justiça de transição. A
anistia retratou, de forma linear, bilateral, os sentimentos reinantes.
Bendita Lei da Anistia, cuja eficácia constitucional foi declarada pelo
Supremo Tribunal Federal.
Alterar esse quadro por meio de revisão judicial, revisitando-se o
conteúdo, a extensão da anistia, implica desprezo à escolha legislativa,
à segurança jurídica, renegando-se o avanço cultural alcançado. O
Brasil pode e deve aprender com o passado, mas há de ter os olhos no
presente, planejando o futuro.
Entre punições de toda ordem e reconciliação, a opção recaiu sobre a
segunda, que se revelou certa e eficiente à pacificação. Perdão em
sentido maior, reconstrução da democracia e afirmação do Estado de
Direito foram escolhas associadas à época. O abandono desse enfoque gera
preocupação.
O pronunciamento do Supremo, em 2010, a partir do voto sábio do ministro
Eros Grau, calcado em insuplantável equidistância, homenageou o que
decidido em termos de normatividade, afastando de vez surpresas,
sobressaltos, de consequências imprevisíveis e indesejáveis.
Incluamo-nos, sim, entre os que se embalam pelo idealismo e dele retiram
a força para construir uma realidade transformadora.
Mais e mais indignados com os acontecimentos que assolam a nação,
devemos manter o desejo de testemunhar o dia em que se terão abolido
obtusas mentalidades e viciadas práticas, que deságuam na perniciosa
junção do privado e do público, usando-se o segundo como meio de fazer
crescer o primeiro, quando deveria ocorrer justamente o contrário: cada
um dar o melhor de si em proveito da sociedade, jamais pretendendo
beneficiar-se, privativa e ilicitamente, da coisa pública, dos bens que a
todos pertencem.
Continuemos a almejar um Brasil livre da corrupção, dos desmandos, do uso desregrado da máquina administrativa.
Essa visão não é utópica. É possível e viável. Para tanto, mostra-se
suficiente que ao menos a maioria esteja decidida a seguir o caminho por
vezes mais difícil e tortuoso, evitando os atalhos falaciosos que
conduzem ao abismo da imoralidade, ilegalidade e abuso de poder. Já
passou, e muito, da hora de dar um basta aos escândalos, aos roubos, aos
desvios de dinheiro, ao aparelhamento do Estado, ao desgoverno.
Nossa tão rica nação é hoje mal vista no exterior, sendo objeto de
investigação por entidades internacionais, desmoralizada naquilo que
deveria ser nosso orgulho e pelo qual se deveria zelar: a ética,
sinônimo da arte de bem proceder na vida social.
Cabe o grito de protesto pela desfaçatez com que se rouba às
instituições nacionais, o inconformismo com a apatia demonstrada por
quem tem a obrigação de coibir procedimentos infames e, às vezes, acaba
seduzido pela vantagem política, pelo lucro fácil advindo de dinheiro
sujo. Clamemos por mudanças profundas na mentalidade dos detentores do
poder.
Tantas decepções não podem minar o otimismo. Reafirmemos a profissão de
fé nas virtudes dos brasileiros, no brio de homens e mulheres que
ousarão levantar-se contra o torpor em que está mergulhado o país,
arregaçando as mangas e cobrando as transformações necessárias. Entre
passado, presente e futuro, a escolha é única, visando dias melhores
nesta sofrida República.
MARCO AURÉLIO MELLO, 68, é ministro do Supremo Tribunal Federal
FONTE ROTA2014
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