por Roberto DaMatta O GLOBO
Investigar e se escandalizar com a roubalheira da Petrobras não significa que se quer acabar com ela. Pelo contrário, o que se deseja é salvá-la
A diretora da Petrobras admitiu num café da manhã concedida aos jornais,
no dia 17 do corrente, que ela “precisa ser investigada. Os diretores,
nós precisamos ser investigados.”
Seu axioma é simples: eu não temo a verdade, logo admito uma
investigação. A perquirição é, em princípio, incompatível com a verdade;
ou, melhor dizendo, ela conduziria a uma prova de que tanto a diretora
quanto a sua diretoria nada têm a ver com a petrogatunagem que
envergonha o empresariado nacional e enxovalha o governo Dilma, o PT e
seus sequazes.
É o pior presente de Natal da história do Brasil.
Mas esse brado de auto-investigação permite uma ressalva que eu tomo a
liberdade de fazer com um pedido de vênia à sra. Graça Foster.
Um inquérito não comprova a verdade. A investigação é um meio para se
chegar à verdade ou à mentira. Ou, talvez pior que isso e como estamos
fartos de testemunhar, a investigação, o julgamento, os recursos
proporcionados aos poderosos pela nossa douta teologia jurídica, na qual
uma ética de isenção passa ao largo, simplesmente legalizam a falcatrua
e, assim fazendo, legitimam o lado mais sombrio da impunidade. Faz-se a
injustiça por meio da Justiça!
Eis uma inversão inadmissível em qualquer coletividade minimamente
honrada e fiel a si mesma. Torturar, roubar e assassinar não deve
santificar ninguém.
Guimarães Rosa dizia que “o começo é tudo". Uma vez montado um plano, um
enredo ou uma política, essas máquinas demandam coisas insuspeitas dos
seus autores. Se o enredo requer um velho e os atores são jovens, há que
se usar um maquiador para tornar um jovem, velho. No regime militar,
montou-se um teatro que excluía parte da plateia. Se o caminho foi para
Sul ou para o Norte, o que se segue é — desculpem o óbvio — seguido.
Mudar o passo no meio do salto resulta em queda ou desastre. Quando
escolhemos um rumo, este rumo faz demandas e nos coage a tomar certas
atitudes. Quando um regime que pretende restaurar a ordem promove e
proíbe a discordância, como foi o caso do regime militar, tudo torna-se
político e passível de ser investigado. Um piscar de olhos vira sinal de
uma conspiração, e uma música, um hino revolucionário. Se a porta tem
uma pequena brecha, é preciso arrombá-la, o que leva à criação de portas
de aço.
Não há como obter democracia negando aquilo que é a própria democracia: o direito de discordar. Suprima-se esse princípio e você inventa, em nome da ordem, a subversão e a traição.
A violência surge quando o direito de criticar e discordar é escamoteado
ou proibido em nome de alguma coisa. Investigar e se escandalizar com a
roubalheira da Petrobras não significa que se quer acabar com ela. Pelo
contrário, o que se deseja é salvá-la. O reinado da lei só existe
quando a lei não foi rasgada ou controlada por uns poucos ou em nome de
algo intocável ou sagrado. Pois a lei é o meio pelo qual, numa sociedade
de iguais em direitos, valores são invocados, disputados e discutidos e
trocam de lugar como verdades ou mentiras. A mobilidade é parte da vida
democrática e ela inclui também crenças, utopias e tabus.
Um velho sábio dizia que não se pode viver sem a mentira, que é companheira da verdade.
Mas se verdade e mentira formam um par, esse par só é legitimo na medida
em que a mentira não seja estimulada. Em outras palavras, não se
constitua como um valor.
O clamor da diretora pode ser interpretado neste sentido. Nele, há o
grito do aprendiz de feiticeiro pedindo socorro a um bom exorcista. O
fogo começa a pegar naqueles que talvez o ignoravam ou achavam que
podiam controlá-lo. Não sei...
O que sei e lamento é que quando o escândalo vira rotina, há algo
profundamente tortuoso com os valores de um país. Não há como não
concordar com FHC que o Brasil perdeu o rumo. E, num sistema sem rumo,
nem o capitalismo que promoveria o fim do mundo termina; e seria
impossível conceber uma nova utopia com um comissariado desonesto.
Aliás, com esse elo estrutural entre política e roubalheira, não dá nem para nomear um ministério.
Não se trata simplesmente de separar a honestidade da corrupção, fazendo
um ingênuo pacto político para eliminar a ladroagem. O honesto e o
desonesto, como o bem o mal, fazem parte da mesma moeda e ocorrem em
todo lugar. A questão não é tentar acabar com um lado que não existe sem
o outro, mas compreender que a desonestidade só é normal se for
ilegitimada e punida. Com os dois pesos e medidas da velha malandragem
nacional estudada por mim faz tempo, a verdade não sai do fundo do poço.
A honestidade só vai se transformar num valor quando a desonestidade
perder a sua aura de santidade e esperteza. Precisamos, sim, ser
investigados porque estamos perdidos num labirinto que construímos e
jogamos fora o fio de Ariadne: o valor — escolha do caminho da luz e da
lei. A capacidade de dizer não a nós mesmos.
FONTE ROTA2014
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