Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 3 de maio de 2016

Não, Dilma não foi eleita democraticamente

RODRIGO SILVA

Imagine que você é o presidente do país. Encare o que está ao seu redor. Sua vida é cercada por seguranças que você mal sabe o nome, carros pretos blindados, tapinha nas costas e um batalhão de gente buscando aproveitar o máximo possível da sua influência ou sumariamente destruí-lo. Sem meio termo.
Ser presidente de um país como o nosso não é uma das tarefas mais fáceis do mundo. Quer dizer, não é como se você fosse um monarca em Liechtenstein ou um primeiro-ministro na Dinamarca. Encarar diariamente a sua mesinha de reuniões e lidar com todos aqueles problemas estruturais que a gente está cansado de ver nos noticiários desde que o mundo é mundo é um desafio e tanto. E o pior, você vive rodeado de pessoas completamente diferentes de você, que buscam ora apoiá-lo, ora sabotá-lo, e que não raramente são responsáveis por tropeços monumentais, sujando o seu nome país afora.
Pense nas pessoas do outro lado da mesa. Cada uma delas – assessores, secretários, ministros e políticos do alto escalão da sua base – acredita deter o conhecimento necessário para ocupar os cargos mais altos possíveis do seu governo. E não apenas isso. Se você tivesse o poder de abrir mão da sua própria posição e entregar o seu cargo a qualquer um dos presentes, todos aqueles caras estariam dispostos a encarar leões com uma faquinha sem ponta numa arena de gladiadores para alcançar esse objetivo. Sem pensar duas vezes.

E tudo isso por uma razão muito simples – é na ponta da sua caneta que as coisas acontecem de verdade. Todos aqueles homens e mulheres naquelas salas fechadas e é você quem manda no pedaço. Você atravessa as portas e subitamente todos se levantam. Você pede silêncio e então, bingo, ele aparece como num passe de mágica. É atrás de você que estão todos aqueles repórteres lá fora, e os grandes empresários, e os governadores aliados. E há as pessoas. Milhões delas. Todo mundo sabe quem é você. Gente do sul e do nordeste, gente rica e gente pobre, gente que nunca leu um livro na vida, gente que escreveu dezenas deles. Você é o centro das atenções e das decisões do país. E é para a sua cadeira que todos olham.
E isso se dá porque, por alguma razão, num certo momento da sua vida, você acreditou deter o conhecimento suficiente para ser a pessoa certa a ocupar o cargo mais alto do país. E não apenas isso. Você se responsabilizou em representar o seu partido e com isso empregar uma multidão de pessoas em ministérios e cargos de confiança. Agora todas aquelas pessoas dependem que o poder daquela caneta esteja nas suas mãos, e não em dedos adversários. Em suma: lutar pela sua posição o torna não apenas importante no grande quadro para milhões de brasileiros, mas especialmente para o grupo de pessoas que você mais se identifica – a sua própria turma.

Imagine que há mais de cem mil cargos de confiança. 1/4 disso é o crème de la crème, os chamados cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), o grande filé que todos aqueles seus companheiros sonham. A caneta é sua aqui. Em pouco tempo você irá perceber que lotear todos esses cargos premiando seus filiados é a mesma coisa que influenciar a distribuição de recursos – ou seja, favorecer aliados ou regiões que lhe permitiram alcançar aquela cadeira, alimentando não apenas a sua própria posição enquanto líder de grupo, mas aumentando o poder do seu partido. Não é de se espantar que tanta gente busque carreira na política, não é mesmo? Há uma imensa vaca gorda na sua frente jorrando leite, sustentada através do dinheiro de milhões de pessoas. Que um grupo de sujeitos se organize para abocanhar a maior parte disso tudo, incentivado por seus próprios interesses – como, aliás, em qualquer outra área de atividade humana – não chega a ser uma grande surpresa.
Como alcançar o controle dessa máquina de fazer dinheiro e poder? Através do voto, num concurso de ideias aberto a milhões de pessoas. Esse é o alicerce da democracia representativa: você se inscreve numa competição com outros candidatos em poder de igualdade, prometendo soluções e desconstruindo as ideias apresentadas por seus competidores, e então torce para que a maioria das pessoas depositem suas confianças numa foto três por quatro sua numa urna eletrônica. Todos aqueles caras que formam a sua base saem por aí influenciando o resultado final.
Foi exatamente nesse cenário que a presidente Dilma foi eleita na última grande corrida à maquina. Com um porém, no entanto: fraudando a lógica do concurso.

Não existe muito mistério daquilo que se entende como eleição democrática. Democracia é um regime político onde todos os cidadãos com poder de voto participam com o mesmo peso na elegibilidade dos candidatos com as melhores propostas. Acontece que quando um político surge pincelando um retrato torto da realidade, prometendo soluções impossíveis, ignorando o mundo real, omitindo informações e maquiando dados oficiais de sua própria gestão, sua eleição se dá exclusivamente através de um estelionato, um golpe realizado à luz da democracia, construído para arrebatar milhões de incautos. E nesse cenário tudo é possível – a eleição abandona a natureza daquilo que é real para abraçar o mundo da fantasia, e a discussão política vira mera obra de ficção, literatura fantástica. Uma fraude.
De fato, como parece inegável nesse momento, não foram as ideias e propostas de Dilma as responsáveis por elegê-la. Dilma foi eleita graças a uma releitura fraudulenta da realidade de seu governo e de seus adversários. Em sua propaganda, Aécio era um filhinho de papai, machista, que cheirava cocaína, batia na mulher, arriscava retirar direitos sociais, defendia que os jovens estivessem na cadeia ao invés das escolas, ameaçava a democracia, defendia a escravidão, o genocídio da juventude negra e pregava ódio contra os nordestinos. Marina Silva não deixava por menos – era uma serviçal dos interesses dos banqueiros, tinha desvio de caráter, ameaçava tirar comida da mesa dos mais pobres e acabar com os programas sociais, era simpática à ditadura militar e cumpria um script que logo a transformaria numa versão feminina de Fernando Collor.
E não apenas isso. Para Dilma, que entra para a história como a responsável por conduzir os piores números de crescimento econômico em toda era republicana, o país atravessava um grande momento e quem dissesse o contrário praticava o mero exercício de pessimismo.
Numa entrevista à Valor durante as eleições, a então candidata dizia que o Brasil iria bombar em 2015 – mesmo que a realidade apontasse para o caminho contrário.
“É absurda a previsão de que o Brasil vai explodir em 2015. É um país estável, economicamente forte, uma economia sólida, um baita agronegócio. O Brasil vai bombar.”
Também dizia que não aumentaria os impostos, nem a taxa básica de juros, nem a inflação – medidas frontalmente desmentidas pouco tempo após o resultado eleitoral. Além disso, assegurava manter todos os direitos trabalhistas (“nem que a vaca tussa”), o emprego e a renda. Novas regras no acesso a benefícios previdenciários, no entanto, adotadas ainda em 2014, aumentariam o tempo de trabalho para requerer o seguro-desemprego e a pensão por morte. Não bastasse, o Brasil se tornaria líder em desemprego no mundo (podendo ter quase 1 em cada 5 novos desempregados do planeta em 2017, segundo a Organização Mundial do Trabalho), e viu a renda média da população despencar 7,4% em 2015, reduzindo o poder de consumo de 9 em cada 10 brasileiros.
Dilma também prometia ampliar o acesso à saúde e transformar o país numa Pátria Educadora. Seu governo, porém, não demoraria muito tempo para realizar cortes bilionários em ambos os setores – apenas em 2015 foram 32% na saúde e 10% na educação (e isso pouco a intimida, pelo contrário – nessa semana, Dilma voltou a acusar Michel Temer de planejar, assim como ela, fazer cortes nessas pastas). Com o FIES, praticou estelionato eleitoral clássico para angariar o voto dos mais jovens: cortou o programa pela metade assim que foi eleita.
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E angariar votos omitindo e falsificando informações oficiais, enganando parte considerável do eleitorado e fraudando a lisura do processo democrático, não seria o bastante. Dilma foi além: usou a própria máquina pública, monopolizada em sua campanha, para obter vantagens injustificadas na corrida eleitoral. Foi isso que acusou o Tribunal de Contas da União, apontando irregularidades no uso dos Correios, que em 2014 viabilizou a entrega, sem chancela ou comprovante de postagem, de ao menos 4,8 milhões de santinhos seus. A presidente também vem sendo sistematicamente acusada de ter praticado caixa dois, recebendo dinheiro ilegal de empreiteiras para dar um gás em sua campanha em troca de obras públicas superfaturadas.
Eleita com 38% dos votos totais, Dilma emplacou seu segundo mandato presidencial deturpando a lógica do processo democrático: usando da máquina pública para obter vantagens ilegais sobre seus adversários; praticando caixa dois de campanha; aumentando em mais de 800% os gastos com propaganda oficial do Minha Casa, Minha Vida, carro-chefe de sua candidatura, às vésperas da eleição; denegrindo as acusações da Lava Jato como mero “terrorismo eleitoral”, fingindo que sua administração não tinha nada a ver com os descasos na Petrobras; mentindo deliberadamente a respeito do cenário em que o país vivia e sobre os projetos que articulava, inventando factoides de cunho pessoal e conspiratório para denegrir seus adversários, tratando toda oposição como mero resultado da maquinação das elites contra o povo brasileiro e emburrecendo o debate político.
Passados quase dois anos de sua eleição, sobra pouca coisa de factual e sólida a respeito de quem se apresentava para receber os votos da população. Dilma é um resultado do marketing político. Sua figura em campanha e no exercício do poder são dois seres absolutamente distintos, que se enlaçam apenas na falta de respeito pela coisa pública. A primeira foi eleita para governar a terra encantada do nunca. A segunda alcançou o poder rasgando a lógica que rege a democracia. Ambas cairão de mãos dadas para o esgoto da história.

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