por Otávio Frias Filho Folha de São Paulo
Pode haver controvérsia sobre o impeachment ter sido deposição legal ou
golpe, mas não resta dúvida de que o Brasil realizou mais uma de suas
transições pacíficas –alterações imprevistas de governo partejadas
mediante pouca ou nenhuma violência.
Estimativa baseada em reportagens totaliza 13 mortes relacionadas ao
ciclo de manifestações que varreu o país entre junho de 2013 e o começo
deste ano –nada menos que 8 delas por atropelamento em barreiras
erguidas por manifestantes, o que diz bastante sobre nossa cultura, por
assim dizer, automobilística.
Houve só duas mortes por arma de fogo, além do rojão que matou o
cinegrafista Santiago Andrade em fevereiro de 2014 no Rio, disparado por
dois falangistas black blocs que aguardam julgamento em liberdade.
Compare-se com os 43 manifestantes mortos na Venezuela no mesmo
fevereiro, para não mencionar as 2.500 mortes que se atribuem à
Primavera Árabe no Egito de julho de 2013 a março de 2014.
Rupturas drásticas que têm muito de aparente, confrontos que se resolvem
numa conciliação acomodatícia, transições que se dão por osmose –não é
outro o padrão histórico subjacente a uma longa série de datas oficiais:
1822, 1889, 1930, 1945, 1964, 1985...
O fio condutor dessa evolução gradualista, sobressaltada por avanços e
recuos, parece tão discernível que deu origem a um famoso mito
identitário, o da cordialidade, entendida como aversão congênita à
violência e como tendência natural à efusão dos sentimentos e à solução
amistosa dos conflitos.
O termo foi adotado num capítulo decisivo de "Raízes do Brasil" (1936)
pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, que o tomou de um
contemporâneo, o escritor Ribeiro Couto, para empregá-lo numa acepção
bem diversa da corrente.
Cordialidade (o que vem do coração) seria a prevalência das relações
pessoais, dadas por laços de sangue, compadrio e mandonismo, típica de
sociedades patriarcais de economia agrária, em contraste com a
impessoalidade jurídica e a igualdade política das sociedades avançadas
do capitalismo liberal.
Em 1948, quando da segunda edição do livro já clássico, o poeta Cassiano
Ricardo resolveu polemizar em torno da palavra, alegando que ela
sugeria a rigidez de uma fórmula ("cordialmente"), sendo preferível, por
isso, "bondade" ou outro vocábulo capaz de exprimir a índole
espontaneamente benfazeja do brasileiro.
Ora, o autor de "Raízes", na esteira de Gilberto Freyre ("Casa-Grande
& Senzala" é de 1933), era um dos introdutores da ciência social
moderna no Brasil ao postular que os povos não estão sujeitos a um
legado inato, como em alguma medida os indivíduos, mas são determinados
pelas condições históricas da evolução de sua vida prática e econômica.
A matriz de Sérgio Buarque de Holanda era o historicismo sociológico de
Max Weber; a de Freyre, o culturalismo do etnólogo americano Franz Boas,
de quem foi aluno. Convergiam para uma perspectiva fascinante,
irresistível pelas sugestões criativas e emancipatórias, quando voltada a
uma sociedade plástica em formação.
Cassiano Ricardo parece nunca ter compreendido o autor que criticava, e
de fato o historiador encerra a inútil controvérsia, que algumas edições
do "Raízes" trazem como apêndice, quase de mau humor, receando já ter
"gasto muita cera com esse pobre defunto".
Mas o defunto continua vivo. Apesar de tantas cifras e cenas
horripilantes a sugerir o contrário, a maioria certamente associa uma
suposta índole nacional à cordialidade na acepção indulgente de Cassiano
Ricardo; há um mês, em longa reportagem, a revista britânica "The
Economist", sempre criteriosa, registrou que "os brasileiros não são
dados a revoluções".
Talvez a melhor maneira de desenredar esse nó seja considerar que no
Brasil uma violência social intensa (expressa, por exemplo, nos
altíssimos índices de homicídio) alcança, por causa de algum mecanismo
oculto, baixa taxa de conversão em violência política.
Esse mecanismo parece relacionado à tradição desmobilizadora própria do
legado escravocrata, que limitou o emprego da violência entre elites nos
arremedos de guerra civil, temerosas de que se alastrasse para baixo.
Talvez se deva também ao ambiente ideológico ornamental, em que as
ideias são ostentadas pelo prestígio que conferem, num cinismo pouco
propício a doutrinas fanáticas.
Deve ser a chave tanto da lentidão evolutiva como da persistente "pax brasiliana".
extraídaderota2014blogspot
0 comments:
Postar um comentário