Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 4 de março de 2013

Assassinato em Oruro


‘Assassinato em Oruro’, por José Nêumanne

PUBLICADO NO ESTADÃO

JOSÉ NÊUMANNE
O que ocorreu em Oruro, na Bolívia, há uma semana não foi um acidente, mas um assassinato. E o único inocente nessa história é a vítima, o boliviano Kevin Douglas Beltrán Espada, de 14 anos, torcedor do San José, que recebia o Corinthians Paulista na primeira rodada de seu grupo da Taça Libertadores da América. O assassino, seja quem for ─ seja um dos presos pela polícia local ou não, seja o menor apresentado aos meios de comunicação antes de ser levado às autoridades (um sinal de nossos tempos midiáticos) ou não ─, terá de ser identificado e processado na forma da lei.
Ninguém, a bem da verdade, espera que a polícia boliviana seja mais eficiente do que seria a brasileira se o incidente (e não uma tragédia acidental) houvesse ocorrido em território nacional. A manutenção de 12 corintianos presos, sendo atribuída a autoria a dois e impingida à dezena restante a pecha da cumplicidade, sem que seja apresentado o autor do disparo, aumenta essa dúvida. Afinal, o assassino poderia ser identificado, até com relativa facilidade, nas imagens geradas pela emissora local de televisão, com o uso de tecnologia simples. Mas a demora em identificar o assassino na cena gravada do crime não deve servir de desculpa para a reação sem propósito dos brasileiros envolvidos no episódio e da cúpula da Confederação de Futebol da América do Sul (Conmebol) na punição adotada.
A rápida localização do bode expiatório perfeito ─ de família pobre e menor de idade ─ em nada isenta ninguém. A julgar que realmente H. A. M., de 17 anos, tenha disparado o artefato, como é alegado, resta perguntar: quem era o maior responsável que o acompanhou na viagem para fora do País, onde ele teria comprado o sinalizador naval que serviu como arma do crime e, caso este pertencesse a outrem, quem era o dono? É bom alertar, de saída, que a inabilidade alegada pelo autor, em oportuna entrevista à televisão, não deveria servir de atenuante, mas de agravante, similar à de um menor acusado de atropelar alguém sem habilitação para conduzir automóvel.
Ainda que se esclareça isso e se encontre uma explicação para o fato de o menor ter deixado o território boliviano para confessar o crime a confortável distância do local onde ele ocorreu e ao qual não será tão fácil como se pensa ele voltar, o episódio não pode ser resolvido assim, num piscar de olhos. Além da necessária identificação de quem disparou e do indispensável processo penal para puni-lo, urge pôr fim à violência em estádios sul-americanos e à facilidade com que esta é perdoada a pretexto da paixão clubística.
No século 20, a filósofa alemã judia Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” para explicar o genocídio praticado em ditaduras. Este é um caso de banalização da morte. Por isso mesmo não pode ser tratado no velho padrão da diluição da responsabilidade, uma das raízes da impunidade que assola e envergonha a sociedade brasileira em vários campos de atividade, entre as quais o esporte, o futebol em particular.
Assim como um ex-jogador do Corinthians, Vampeta, definiu sua relação profissional com o time de maior torcida do Brasil, o Flamengo, numa sentença-síntese ─ “eles fingem que pagam, nós fingimos que jogamos” ─, a argumentação do clube que vem de ganhar o Campeonato Mundial pela segunda vez se baseia na presunção da inocência coletiva pelo crime individual. Pretextos do tipo “a torcida inteira não pode pagar pelo delito de um torcedor” ou “quem comprou ingresso para os próximos jogos do time não pode ser prejudicado” desrespeitam a memória da vítima. Faixas, chororô e minutos de silêncio são de uma desfaçatez de fazer corar frade de pedra.
O policial Mário Gobbi, presidente do clube, deslustra seu currículo ao reivindicar para sua grei o direito de delinquir sem punição. O Corinthians é uma “nação” quando convém e na adversidade deixa de sê-lo? O truísmo é tolo: todo time perde mando de jogo em represália a torcidas mal comportadas.
Se urge deter as mãos que disparam projéteis em arquibancadas, para isso deveriam ser aplicadas punições mais duras do que as anunciadas pela Conmebol. Um exemplo histórico mostra que é possível acabar com a violência em estádios de futebol. Em 29 de maio de 1985, 39 torcedores morreram e 600 ficaram feridos no Estádio de Heysel, em Bruxelas, na Bélgica, durante a final da Liga dos Campeões da Europa, entre a Juventus, de Turim, Itália, e o Liverpool, da cidade portuária britânica dos Beatles, num tumulto provocado por hooligans. Por causa da tragédia, todos os times britânicos foram suspensos por cinco anos dos torneios da Uefa, entidade que gere o futebol europeu, como a Conmebol o da América do Sul. O Liverpool, time de tradição na Grã-Bretanha comparável à do Corinthians aqui, ficou seis anos fora das disputas. E 14 torcedores identificados pela polícia belga como criadores do distúrbio passaram três anos na cadeia. Desde então se adota no Reino Unido a prática de impedir que encrenqueiros frequentem estádios nos jogos de seus times: enquanto a bola rola, executam trabalhos sociais. Hoje, alambrados e até fossos são dispensáveis em estádios ingleses.
Será sonho de uma noite de verão esperar que um dia isso ocorra nesta “pátria em chuteiras” e nos domínios da Conmebol? Pelo visto, brasileiros e bolivianos ainda terão de conviver mais com a banalização da morte pela violência de quadrilheiros travestidos de membros de torcidas organizadas. O Tigre, da Argentina, desrespeitou impunemente a torcida que compareceu ao Morumbi na final da Copa Sul-Americana, em 12 de dezembro último, deixando de jogar o segundo tempo, pois não recebeu dos organizadores a devida punição. O péssimo comportamento do anfitrião, o São Paulo, foi punido com a perda de um mando de campo, o que significa anistia, na prática.
Não suspender o Corinthians por pelo menos esta edição da Libertadores e não proibir sinalizadores navais nas arquibancadas é manter a impunidade e estimular a violência.

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